26.12.14

Música

Federica Erra


Falaste-me de Bach com o entusiasmo 
de um menino que conhece um tesouro 
e sabe onde está escondido.
É a juventude da música, me disseste. 
É um compositor exímio, repetiste. 
Nesse dia ouvimos Bach. 
E foi como se eu o ouvisse pela primeira vez.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013
Desejo a todas as minhas Amigas e a todos os meus Amigos um ano de 2015 MELHOR

15.12.14

Somente porque é Natal


     
     
     Somente porque é Natal 
     ele veio nascer à minha porta
     como se fora eu a sua mãe.
     É de linho o pano que cobre 
     meus braços,levemente 
     encurvados, para neles caber 
     o berço de embalar 
     o menino sem presépio.
     A pausa do vento
     a preparar a neve
     lembra-me  o desamparo 
     de outras crianças, tantas,
     a quem a fome quebranta o choro.
     E digo: venham habitar 
     para sempre o meu poema
     como se fossem meus filhos.
     
     Graça Pires, Natal 2014                                                                                                                        
Ao silêncio que guardamos no coração
juntemos um cântico de Luz. 
Porque amamos a Vida.
Porque desejamos a Paz.

UM NATAL DE AMOR PARA TODOS!
  


Pintura de Caravaggio 
Fotografia  de Joakim Eskildsen                                     

6.12.14

Tempo

Michael Bilotta


Pela fresta de uma luz que nunca se repete 
nem se curva no abismo onde pernoitam 
as sombras foge-nos o tempo. 
É inútil tentar ouvir o som dos pêndulos 
na alucinante respiração das cidades 
onde todos os relógios nos confundem. 
Os horários vão-nos queimando na memória 
outra idade em que as pálpebras 
não se encharcavam ainda com a secura da boca.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

29.11.14

Com devoção ou descrença


                                                       Para o José d'Ângelo

Passas vagarosamente sobre um areal.
A carga dos navios pesa-te nas costas.
A boca com iodo e sal
suspende a raiz de um grito.
Fatigado, ajoelhas e benzes-te
com a devoção ou a descrença
de quem pressente o desamparo
das palavras ou apenas o instante
em que há aves trémulas
voando no teu peito.

Graça Pires
De: Espaço livre com barcos, 2014

22.11.14

Em seara alheia




Não sei

Não sei dizer-te, 
se o rio corre para o mar
se a ponte encurta o caminho
se o mar está em maré vaza.



Não sei dizer-te, amor,                          
se o amor é a palavra certa                   
para te dizer, 
se o meu coração parou
ou o tempo parou para nós.                                     
A textura da tua pele
sente o arrepio 
que diz a sede                                           
da tua boca, 
o orgasmo falhado dos
sentidos,
a fome que no teu 
corpo espreita?
                                           
Não sei dizer-te
se o medo de perder-te
te fez perder-me,
se os beijos que guardei para ti
já no tempo os perdi,
se foi a saudade que nos matou
ou matámos a saudade
dentro de nós.

Não sei dizer-te
Não sei...
                                          
Otília Martel
In: Olhos de vida. Ilustrações de Catarina Lourenço. Modocromia, 2014, p. 51

16.11.14

Ainda me causa espanto a madrugada

Claude Monet

Entre mim e o mar
ainda me causa espanto a madrugada.
Sempre diferente. Sempre idêntica.
Tons de mel, de romã,
de diamante, de milho seco.
Sopro de sal, de sangue, de limos.
E, por trás das dunas,
a respiração dos amantes
sobressaltando as aves.

Graça Pires
De: Espaço livre com barcos, 2014

8.11.14

Em seara alheia


nunca fales no exílio
na pedra in-disposta
perante o olhar branco
de quem a colocou
perante o corpo

há só um lugar assumido:
paraíso seiva-geradora-de-
tempestade,
o agora tempo
o agora olhar de início,

na vida de todos nós
na vida sempre vida
que é matéria de toda
a linguagem

[mesmo que dela
se aproxime o inumano].

In: Teoria do Movimento. Ed. Autor, 2014, p. 43

2.11.14

Declínio

Jim Wehtje


Achego o corpo à terra 
para antever a cor dos lírios 
na hora derradeira. 
É o momento de aparar as arestas 
na engrenagem do declínio. 
Falta-me nas mãos a haste 
que enviesa a sombra 
até que a treva se cumpra.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

26.10.14

Fome

Gordon Parks

Voraz é a fome que, em fúria, 
devora os cardos onde o som do trigo 
afunda o grito da escassez 
que em volta da boca é ferida e dor.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

19.10.14

Em seara alheia



Nascer

Talvez nascer seja isto: abrir o corpo em pétalas de
lágrimas e depois derramar suspiros como quem beija
o chão que nos leva à alegria. Deitar o peito sobre as
estrelas como se tal pudesse ser e aí esperar uma
alvorada a que dar o nome.
E uma vez nascidos, talvez existir seja isto: tocar a
vida com a boca em cada canto como se fôssemos
palavras.

Virgínia do Carmo
In: Relevos. Macedo de Cavaleiros, Poética, 2014, p. 37

11.10.14

Convite - Figueira da Foz: Da casa que me separa da infância

Foi  também uma festa linda! 
Obrigada a todos os que a partilharam comigo. 



Gostava de contar com a presença de todas as minhas amigas e de todos os meus amigos que moram por perto da Figueira da Foz - a terra onde nasci.


Da casa que me separa da infância
avistava-se o lugar onde as águas
mais espessas do rio se juntam ao mar.
A foz. A ondulação crescente
desafiando as areias.
As marés tão altas que faziam brilhar
os peixes  e assinalavam, no farol,
o lugar onde as gaivotas
podiam começar a enlouquecer.
Era aí a casa que me separa da infância.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

5.10.14

O perfil silente dos barcos

Maria de São Pedro

Hoje, que tenho o mar todo
nos meus olhos, subo à torre do farol
para avistar o perfil silente dos barcos
e adivinhar a indecisa linha
que separa a noite da madrugada.
A navegação costeira faz-se ao mar.
Reparo então que os pescadores
não precisam de mapas para a faina.
Têm talhado no rosto o rumo dos cardumes
e uma rosa-dos-ventos engastada em cada mão.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

28.9.14

Eu te baptizo em nome do mar

Ana Pires

Eu te baptizo em nome do mar,
disse minha mãe com barcos na voz.
E as ondas enlearam nas águas o meu nome,
abrindo nas fendas do corpo um impulso
salgado que me brandiu o sangue.
Sei agora que há âncoras afogadas
nos meus olhos: nítido eco de todas as demandas.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

18.9.14

Convite

Foi uma festa linda! 
Obrigada a todos os que a partilharam comigo. 
Obrigada também aos que quiseram estar e não puderam.



Gostava de contar com a presença de todas as minhas amigas e de todos os meus amigos.


Aproveito para informar que no dia 18 de Outubro haverá o lançamento do mesmo livro na Biblioteca Municipal da Figueira da Foz pelas 16 horas.
Em data a confirmar irei a Trás-os-Montes.

10.9.14

Coragem

Jean Dieuzaide

Escutar o rumor da morte 
na rotina dos dias, 
no sangue das palavras, 
na dor, na perda, no tédio. 
E renascer a toda a hora 
com a inocente respiração da vida. 
Serenamente.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

3.9.14

Campo

Ana Pires

Voltamos sempre à casa de campo. 
Quando não estamos as plantas 
crescem de modo irregular e o pó 
acumula-se nos móveis e nos livros. 
Não importa. 
Nós voltamos apenas para regar a sede, 
beber a terra, colher a paisagem, 
mastigar o silêncio, partilhar a fome 
e tornar depois a ir embora 
com o corpo a doer da própria ausência.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

27.8.14

Em seara alheia




11.

neste silêncio em que te rezo. guerreira de um cântico sem tréguas. mendiga da luz.
entrego-te a palavra assim simplesmente. simplesmente a recorrência de um silêncio a que nos entrego. profeta e veneno mel sumptuoso. tudo o que é voraz e ao mesmo tempo quieto. tão quieto
que pode ser dádiva. uma e outra vez. todas em que seremos chão.

Isabel Mendes Ferreira
In: O tempo é renda. Lisboa: Labirinto de Letras, 2014, p. 028

20.8.14

Prazer

Edouard Boubat

Agora que regressaram os meses 
em que a encosta dos medronheiros 
se encheu de frutos vamos correr 
ribanceira abaixo como quando éramos 
meninos imortais e sem recato. 
Talvez mais tarde os medronhos 
e a lascívia nos embriaguem e, 
enquanto os pólenes se vão acoitando 
nas flores, haja um inesperado mel 
a extasiar-nos os lábios.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

13.8.14

Vento

Richard Avedon


Entro no poema através do vento que no verão 
litoral deste país parece enlouquecido. 
Agora o vento já não é tão atrevido como dantes, 
quando as mulheres usavam saias rodadas. 
É que a moda ludibriou o vento. 
Trouxe calças e calções. Ajustou os vestidos. 
O vento, esse, aprendeu a brincar com os piercings 
que as meninas prendem no umbigo. 
Às vezes dança também nos meus cabelos.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

6.8.14

Em seara alheia



Infinita conversa com as nuvens

Antes de partir para as montanhas espalharei os
poemas pelo chão  como quem abre um mapa pela 
última vez. Como quem relembra o extenso areal dos 
dias, a incansável rotina dos comboios, a infinita 
conversa com as nuvens.

Quando partir para as montanhas deixarei os poemas
pelo chão como quem renega todos os mapas. Levarei
apenas o meu corpo para que ele me fale do teu.

Rui Miguel Fragas
In: O nome das árvores. Macedo de Cavaleiros: Poética Edições, 2014, p. 38

30.7.14

Viagem

Pier Toffoletti


Sigo os teus passos, caminheiro 
perdido em cidades sombrias. 
Não sei manejar as estacas 
com que te inclinas no abrigo dos alpendres. 
Mas todos os caminhos me desafiam para o desvario 
de um lugar, de uma palavra, de um rosto. 
Como se a linha da vida me cartografasse o olhar.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

23.7.14

Nada temos para dizer

Federica Erra

Nada temos para dizer quando lembramos
os cântaros da sede, a boca alagada
e o corpo aberto à humidade dos trevos.
Calamo-nos então para não ferirmos
a água represada no olhar.
Os lábios gretando na fenda da secura.

Graça Pires
De O Silêncio: lugar habitado, 2009

16.7.14

Em seara alheia



Os que falam das aves são discretos.
Delas dizem a permanência branca
Acima da corrupção das vozes.

A palavra ave torna-se som.

Falam as aves, mudas, com seus gestos
Dos que falam delas e, falando, voam.

À semelhança dessas aves, voam,
Lendo os sinais do tempo que lhes cabe.
A ele sujeitos, se vão libertando
E por aí avançam como aves.

Rui Almeida
In: Temor único imenso. Fafe: Labirinto, 2014, p. 29

10.7.14

Dança

Degas


Contavam-me quando era menina 
que, em noites de lua cheia, havia mulheres nuas 
junto às fontes dançando ao ritmo da vertigem 
das suas ancas, até de madrugada. 
Calavam-se os pássaros e o vento. 
Convocavam-se lobisomens e cães negros. 
E dizia-se que eram bruxas. 
Nunca as vi. Mas sonhei ser uma delas muitas vezes.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

3.7.14

Casa

Dorothea Lange

Antes da casa havia o teu olhar 
e a rega exasperada das rosas 
a desaguar imensa em minha boca. 
Houve dias e dias em que se tornou urgente 
um ponto de fuga pela noite dentro, 
não fosse a alvorada deixar de ser
uma ave liberta em nosso peito. 
Depois, ninguém sabe de onde veio o fascínio 
que nos colou a este chão.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

26.6.14

Em seara alheia




o Verão não tinha limites.
a mulher lidava com a casa pele com pele
andava todos os dias muito de noite
dias e dias de noite de roda dos fetos
toda dentro do Verão sem nenhum
tornozelo de fora.
era o Verão em hora de ponta
a mulher arrastava-se dentro da mulher.
os dias só faziam sentido existindo noites
as noites só faziam sentido trincando nêsperas
e bordando palavras que dessem sombra no ventre.

uma noite a mulher bordou a palavra mulher
e deitou-se de bruços.
era quase luz quando a primeira letra se ergueu.
e sem que houvesse tempo de escolher canção e vinho à altura
dessa primeira letra saiu o corpo
íngreme
arado
torrencial
do que havia de ser o anjo.

Catarina Nunes de Almeida
In: Marsupial. Lisboa: Mariposa Azual, 2014, p. 16

19.6.14

Janela

Toulouse-Lautrec

Abro todas as janelas para que a brisa se aproxime. 
É madrugada e o cheiro da maresia é tão intenso 
que as ondas parecem quebrar-se contra a casa. 
Sinto a aragem do sul com sua lâmina de sal a roçar-me a cara. 
E daqui, desta janela, começo a amar o assombro 
dos náufragos atraídos pelo chamamento dos búzios 
e pelo alvoroço das aves em redor dos barcos.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

12.6.14

Noite

Francesca Woodman

Onde os vultos escurecem na exactidão do olhar 
desvanecendo a cor dos lírios 
começa o enigma da noite: 
sombra de uma sombra, 
esse outro modo de luz transfigurada.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013