30.9.13

Onde o outono não é um cenário sossegado

Nathan Wright

Olho o rosto dos homens 
onde o outono não é um cenário sossegado, 
porque lhes sobe até à boca 
um vulcão de espanto, 
a rir na minha própria cara.
Então, um súbito amor a saber a sangue 
dramatiza a voz dos disfarces 
no interior de mim mesma, 
como se desse conta do lodo 
que me cobre os olhos 
e, de repente,um rio 
me corresse na alma sobressaltado.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

23.9.13

Um abraço para Ramos Rosa




Na folha branca rolam como pedras as palavras
do poeta: lisas, nuas, brancas de tanta luz.
É possível articular seus versos,
encontrar na dança das sílabas
o mais deslumbrado silêncio,
ainda grito, ainda sangue, ainda pólen.
É possível ir de sombra em sombra,
pela margem do vento,
até à branca clareira do poema.
É possível dizer seu nome
rasgando na boca o cantar dos pássaros
no inverno quando a neve cobre as árvores
de brancura e um fio de água
lhes escorre pelas asas brancas, de seda.

Depois quem poderá adiar este abraço
que o coração reclama?

Graça Pires 
In: Um poema para Ramos Rosa. Labirinto, 2008

19.9.13

A mesma luz

Vincent Van Gogh (detalhe)

A lua quase cheia acentua o ladrar dos cães
em pátios onde crescem 
desordenadamente as giestas.
Um duplo estremecimento lateja nos espelhos
como sombras insinuadas no eixo da luz,
a mesma luz que adivinhamos nas searas,
nas estrelas, nos girassóis de Van Gogh,
no post-it colado na mesa a dizer amo-te,
no risco incontornado dos relâmpagos.
Há um espesso ouro despenhado sobre as árvores 
porque o outono se detém na inclinação dos dias
e a colheita nos devassa a intimidade dos frutos.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

12.9.13

Deixa-me beber o mel dos frutos



Vladimir Clavijo


Um pássaro de fogo hesita em atear a noite
porque temos a floração das árvores
atravessada no rosto a consentir-nos
um olhar capaz de agitar as tílias
ou fazer explodir as papoilas por dentro do deserto.

Há medronhos e morangos e bagos de romã
cortando a fome talhada no milho-rei das searas.
Deixa-me beber o mel dos frutos,
a mim, para sempre rendida ao néctar
de teus lábios claramente incendiados
nas primeiras águas.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

5.9.13

O sinal de alarme

katia Chausheva


Regressei com a lentidão de quem vem de longe
do mar com pedras na boca para cuspir nos lugares
onde o vento envolve a gruta das nascentes.
Só a palidez das minhas unhas denunciava
o sinal de alarme que me atravessava os pulsos
mordidos por meus dentes quando a dupla sombra
dos barcos me roubou, em golpes certeiros,
o trigo onde se afundaram as foices.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012