25.8.10

Em seara alheia





Na impossibilidade de hoje te florir apaziguo a saudade muda e áurea singularizando a memória. dirás no teu canto de cinzas que nada mudou. que o tempo é só um coração aberto à espera de ser prado. direi mãe. apenas. e terra. onde a lágrima se fez flor. e luto. despenhado nos teus cabelos brancos.


Isabel Mendes Ferreira
In: As lágrimas estão todas na garganta do mar. Lisboa: Arcádia, 2010

18.8.10

Adormecemos com sede



As águas baixaram.
Amainada a maré vieram as gaivotas
poisar-nos na janela.
O brilho inesperado dos barcos
e das dunas doía no olhar.
De olhos fechados, ainda assim,
nos perturbava a clareira de bruma
que alastrava do mar.
As gaivotas, essas, traziam nas pupilas
um rebentar de ondas que nos ensurdecia.
Ao anoitecer jantámos em silêncio
e adormecemos com sede.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

9.8.10

Sem possibilidade de fuga

Edward Hopper


Sem possibilidade de fuga
habito a luz intensa da treva
e guardo, no olhar, a líquida sombra,
que sobrevive na memória dos barcos,
quando a madrugada se rasga,
devagar, na plenitude dos mastros.
Eu não sei a cor dos navios,
quando os marinheiros avistam as dunas
e o cheiro quente da areia arde em suas bocas.
Apenas sei a cor agressiva de meus olhos,
condenados à errância das sombras.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007