27.8.14

Em seara alheia




11.

neste silêncio em que te rezo. guerreira de um cântico sem tréguas. mendiga da luz.
entrego-te a palavra assim simplesmente. simplesmente a recorrência de um silêncio a que nos entrego. profeta e veneno mel sumptuoso. tudo o que é voraz e ao mesmo tempo quieto. tão quieto
que pode ser dádiva. uma e outra vez. todas em que seremos chão.

Isabel Mendes Ferreira
In: O tempo é renda. Lisboa: Labirinto de Letras, 2014, p. 028

20.8.14

Prazer

Edouard Boubat

Agora que regressaram os meses 
em que a encosta dos medronheiros 
se encheu de frutos vamos correr 
ribanceira abaixo como quando éramos 
meninos imortais e sem recato. 
Talvez mais tarde os medronhos 
e a lascívia nos embriaguem e, 
enquanto os pólenes se vão acoitando 
nas flores, haja um inesperado mel 
a extasiar-nos os lábios.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

13.8.14

Vento

Richard Avedon


Entro no poema através do vento que no verão 
litoral deste país parece enlouquecido. 
Agora o vento já não é tão atrevido como dantes, 
quando as mulheres usavam saias rodadas. 
É que a moda ludibriou o vento. 
Trouxe calças e calções. Ajustou os vestidos. 
O vento, esse, aprendeu a brincar com os piercings 
que as meninas prendem no umbigo. 
Às vezes dança também nos meus cabelos.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

6.8.14

Em seara alheia



Infinita conversa com as nuvens

Antes de partir para as montanhas espalharei os
poemas pelo chão  como quem abre um mapa pela 
última vez. Como quem relembra o extenso areal dos 
dias, a incansável rotina dos comboios, a infinita 
conversa com as nuvens.

Quando partir para as montanhas deixarei os poemas
pelo chão como quem renega todos os mapas. Levarei
apenas o meu corpo para que ele me fale do teu.

Rui Miguel Fragas
In: O nome das árvores. Macedo de Cavaleiros: Poética Edições, 2014, p. 38