28.3.08

História de amor

Michele Lamontagne


Era primavera em todas as montanhas
tecidas de lilás
e o luar escorria pelas casas,
decifrando alegorias e monólogos.
Ao findar da tade, havia já
no olhar de toda a gente
um itinerário definitivo
de sensações breves e paradoxais.
Das mãos das mulheres
saíam cavalos de barro
com fios invisíveis,
que suspendiam todas as perversões,
e os limos perfumavam a bruma
como um símbolo imortal.
Foi então que, no meio da noite,
um adolescente iniciou,
perturbado e lento,
todos os cambiantes do seu corpo nú,
até à ruptura líquida dos desejos.
E todas as mulheres
o adoptaram como filho.


Graça Pires
De Poemas, 1990

24.3.08

Certos pressentimentos

Alain Jenkins

Os últimos nós do silêncio,
nos cantos da boca gritam
que há lugares onde se cobre de lodo
o destino dos homens e se rasgam,
em dolorosos pedaços,
os sonhos fraternos.
Envelhecem, em meus dedos
certos pressentimentos.
Digo e desdigo a tristeza.
Frente a frente com o texto,
incluo-me na desmedida
demência das palavras.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

20.3.08

O poeta



Contemporâneo dos deuses é o poeta.
Os seus templos têm abóbadas
de silêncio e nostalgia.
Os seus ritos roçam a magia,
a raiva, o exorcismo.
O seu tempo tem a rotação das dunas
no litoral do fogo.
Há multidões partilhando
o ágape fraterno dos seus versos.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

17.3.08

No mês de Março

Menez


Estávamos no mês de março.
Na caixa do correio, encontrei um postal
ilustrado : Menez (guache s/papel).
Era teu. E, entre outras coisas
que guardei para mim, dizia:
Gosto de ti quando sorris ao meu embaraço
de tanto te gostar. Gosto de ti
mesmo quando estás longe, no alvoroço
de te ter perto. Gosto de ti,
mesmo quando não parece
e sempre mais do que parece.
Que noite morna me nasceu,
então, no corpo como se fosse estio?


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

13.3.08

Todos os contrastes

Cleri Biotto


Coloco, ao alcance dos lábios, todas as convicções
e desdobro as palavras sobre a noite.
Regresso à caligrafia indomável dos poemas,
para fixar as imagens que se adivinham
nas entrelinhas daquilo que acontece sem aviso.
Depois, deixo, no coração, à deriva, todos os enredos
que se revezam: inevitáveis, aleatórios, urgentes.
E, na minha mão direita, onde as veias engrossaram
como rios, circulam, agora, todos os contrastes.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

10.3.08

No olhar, um barco

Richard Price

Surpreendida pelo ideário
de um marinheiro sem rota,
o meu olhar abrigou um barco
e reaprendeu, sem dificuldade,
os mesmos gritos dos nómadas.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

7.3.08

Às mulheres do meu país

Matisse


O dia cobre-se de pássaros,
que sobrevoam quotidianas ficções.
No meu país, as mulheres têm a cor
da sede nos seus olhos, ávidos de milagres.
É por isso que as mãos lhes estremecem de prazer.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

2.3.08

Um relógio parado

Salvador Dali


Que ruído me devolveu o insulto
de espelhos quebrados junto à pele?
Na insónia confidente,
um relógio parado marca o caminho do inverno,
onde os poetas começam a morrer.
Aquém do frio paira uma brisa repousada
e uma bandeira branca irrompe da garganta,
esculpindo a rendição da alma.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997