30.8.07

Um rubor de malvas floridas



Com uma perturbação herdada das sombras,
a luz excessiva de agosto adormeceu nos olhos
das aves fatigadas pela travessia das manhãs.
É possível improvisar, agora, a nesga de cor
que lhes define as asas: um rubor de malvas
floridas, deslumbrando o sol.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

27.8.07

Em seara alheia


Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsenquente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira
in Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990

23.8.07

Madrugada de pássaros

G. Braque

Madrugada de pássaros, nos disseram.
E falavam do alvoroço matinal do silêncio,
perseguindo a luz.
Era verão. À roda da cintura,
pendurávamos o musgo da manhã
e íamos, de lábios molhados, regar o pomar.
Os teus olhos ardendo no meu corpo.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

18.8.07

Uma mulher

Ansel Adams
Um resto de Agosto.
Uma mulher conhece
o caminho da fonte
porque o seu corpo
é um desvio do mar.
Talvez ela nos mostre
um céu líquido
por detrás dos seus ombros.
Não só as mãos morrem
fatigadas de desejo.
Há cascatas de pedra
nos olhos da memória.


Graça Pires
De Poemas, 1990

14.8.07

A nitidez do tempo

Alex Jawdokimov

A quem anunciarei a súbita clareira,
onde a lua do meio-dia
anula a morte das aves nocturnas?
Há uma cilada de palavras a envolver a volúpia,
no vértice de um sexo quase puro.
A vigília do poema acende-se numa linguagem única
e a forma adejante das letras traça ficções de solidão
nas minhas veias, por onde circulam ódios e paixões.
Qualquer eternidade me aguarda,
porque ouço a nitidez do tempo retocando o meu olhar.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

11.8.07

Orfeu Rebelde

CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA
12.08.1907-12.08.2007


Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.


Miguel Torga
In Orfeu Rebelde, Coimbra, 1970

9.8.07

Encho os olhos de mar

Michael F. Wood
Encho os olhos de mar
e abro, de par em par,
os meus sentidos,
para deixar passar
todos os barcos perdidos.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

6.8.07

A memória das mãos



Com luz e sombra se desenha
a memória das mãos :
Primordial labirinto dos anjos.
Receptáculo onde o tempo divino é perene
e se manobram os pormenores biográficos
dos que recusam a morte.
Dédalo estava enganado.
Quaisquer asas começam rente ao sol.
O pressentimento do voo tem raízes no fogo.
Um pássaro reflecte nos olhos o cume dos sonhos
e respira luz, à tangente da noite.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

2.8.07

O verão

Vitali

Agosto aqueceu, sem aviso, a margem dos dias.
Por isso, não dizemos o quebranto do sol
sem silabar a ânfora de água fresca,
ou reclamar o sazonal fruto
que anuncia nos lábios uma mitigada sede.
Nenhum hálito enfuna as velas do prazer,
nem inventa o vento que as motiva.
Descoberta a praia onde o corpo se aquenta,
sobeja um mar, no litoral da voz,
para navegar o verbo e incluir, no texto,
as palavras que servem para dizer
trigo, árvore, asa, nascente,
e soletrá-las sem profanar a sombra
que se desprende das pálpebras
daqueles que, à lembrança de um abraço,
se enternecem.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996