26.7.21

Antes da estrela da manhã

Ana Pires Livramento

Antes que o sol poente 
ultrapasse a linha do horizonte, 
um ângulo de sombra corrige 
a deriva do brilho no meu rosto. 
No arco das pálpebras 
havia a quilha do veleiro 
que me atravessa os olhos 
cada vez mais líquidos. 
O impulso do corpo 
fazia deslizar o vento 
pelo incêndio dos mastros 
na ondulação da noite. 
Antes da estrela da manhã.

Graça Pires

In: Acanto: revista de poesia. Leiria: Hora de Ler, 2021, p.55


Se desejarem ouvir o poema dito pelo meu filho Pedro podem fazê-lo aqui:

                                                https://youtu.be/srbnOQ_TbuY


Minhas Amigas e meus Amigos, vou fazer uma pausa. Voltarei a 16 de Agosto. Desejo que passem bem, com saúde, tranquilidade e conforto.

Beijinhos.

19.7.21

Memórias de Isadora XI



Tentei ignorar o tempo 
golpeado de incertezas, 
recusando o desgaste 
dos caminhos percorridos 
e das lembranças 
deslizando sobre a pele. 

Tão dúplice a farpa da sedução. 

Tão perecíveis os amores. 

Tão tardia a serenidade 
da vida e da morte. 

Tão vulneráveis os passos 
em que me atrevia.

Graça Pires
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 49

12.7.21

Em seara alheia



Escrevo com uma mulher 
a correr-me nua por dentro das veias. Procuro-a 
com o sangue em delírio e uma rosa de tinta
no desalinho do peito. Escrevo
a sua sombra radiante. Abro livros e encontro-a
por todas as páginas e digo: eis o poema, eis a luz
refratada de um rosto, eis o orvalho mais puro.
E os livros fecham-se e ardem e eu pergunto:
como pode a água arder assim.
E fico preso nos longos cabelos da mulher
e é como se ficasse repentinamente extasiado
no átrio de uma casa muito bela enquanto
as portas de fecham num rumor que não se ouve.

[...]

Escrevo uma mulher nua por entre a erva alta
de um lugar abandonado. E digo: 
tenho sede, ó mulher por entre tanto orvalho.
E os teus olhos tocam levemente os meus lábios
e os meus lábios ardem à luz da água cristalina
e oscilam os teus seios como sinos quase imóveis
e roda uma roda de tinta na cruz do peito
e o teu ventre é felino como uma duna dourada
a estender-se para lá da maré mais alta.

[...]

Rui Miguel Fragas
In: A rebentação das águas. Braga: Poética, 2021, excertos das páginas 43-44


4.7.21

Tinham uma bússola imaginada

Ary Scheffer

Tinham uma bússola imaginada 
no peito, antecipando o destino 
de seus passos transumantes. 
Foram até ao começo do mundo. 
Beberam juntos a água inicial. 
Levíssimas, as mãos dele, 
no modo diverso de tecer afagos. 
Inteiras, as mãos dela, 
de seus vagares vestidas. 
Assim se souberam ávidos um do outro. 
Até ao fim do mundo. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 54