28.11.16

No meu coração litoral

Agnieszka Motyka

Habita-me o brilho dos areais
quando a salsugem
tem a densidade de um aceno.
A navegação é inadiável.
Em minhas mãos passa,
perfeito, um navio.
Um punho de vento leva-o para o sul
onde a inquietude dos pássaros
se insinua no meu coração litoral.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

21.11.16

Subversão

Francesca Woodman

Cortei todos os dedos no claustro 
das liturgias iniciáticas mais severas. 
As minhas mãos são agora as estremas 
da planura do vento de novembro.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

14.11.16

Não tem limites

Jean Dieuzaide

Não tem limites a cúmplice desordem
das cidades onde resistimos
ladeando de argila
as janelas das casas
para que o ferrolho do ruído
não abra uma ferida
nas paredes brancas
em que um extenso silêncio se instalou.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

7.11.16

Em seara alheia


Ainda é cedo, sabes?
As pedras são maiores que as nossas mãos.
No ar pesa a espessura da tristeza.
As uvas estão verdes.
Não é tempo do vinho.

O grão já é farinha, mas
o fermento dorme.
Não é tempo do pão.

Pequenos os seios das mulheres.
Não é tempo do leite.

As abelhas zumbem, mas
a flor do rosmaninho é só botão.
Não é tempo do mel.

Amargos os lábios dos homens.
Não é tempo do beijo.

Ainda é cedo, sabes?
Esperemos de mãos dadas,
sentados no caixote dos brinquedos,
bebendo os versos que havemos de escrever.
Verás que amadurece o tempo da saudade.

Licínia Quitério
In: Memória, Silêncio e Água. Poética, 2016, p. 58