23.2.12

À memória do Zeca


Passou por aqui um poeta: inquieto,
polémico, subversivo.
Com a noite entrincheirada nos dedos,
engatilhou as letras contra os lábios,
até acender, preso ao coração,
o lume das palavras.
Peregrino de memórias solidárias
saltou os muros do tempo em que viveu,
com pressa de estar entre os homens
no tempo da revolta.
Hoje as palavras pertencem-lhe,
intactas, por direito próprio,
humanamente adquirido.
O silêncio também.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

17.2.12

Ausências sem rosto

Magritte

Entre o culto da lua e um estranho ódio,
cresce uma noite de lendas e feitiços
e deflagra um luar íntimo
em busca da conivência do corpo
para embalar a nudez e o mênstruo das fadas
rompendo o céu da boca com o brilho dos olhos.
O deleite de muitas águas
atravessa ausências sem rosto,
enquanto uma nítida cumplicidade
converge sobre as mãos interditas
de quem envelhece longe do rio.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997 

10.2.12

Os olhos verdes


Para a  minha irmã Teresa Pires

Os olhos verdes  de meu pai
herdou-os a minha irmã.
Agora os panos dos veleiros
encharcam-se com as águas de sal
que lhe são travessia no olhar.

Graça Pires
A incidência da luz, 2011

3.2.12

Olhas para além dos barcos



Para o meu irmão Zé Pires

Instáveis como as sombras, as nuvens
perpassam o teu olhar carregado de melancolia.
Olhas para além dos barcos
e lembras o velho Santiago de Hemingway.
A dor não abate um homem, ele o dizia,
com as mãos escorrendo sangue
de tanto ser puxado pelo peixe
que o prendia ao mar.
Na continuidade dos remos,
todos os tons de azul envolviam
o mesmo horizonte de água, a mesma sede,
o mesmo silêncio, o mesmo sonho.

Graça Pires
2012