28.2.07

Cúmplice do tempo

Amedeo Modigliani

Cúmplice do tempo, fixo no calendário
o instante de ser jovem e as minhas mãos
enchem-se de barcos, disponíveis
para viagens à terra prometida.
Se não fosse o excessivo luto
nas linhas do meu rosto,
viriam marinheiros de todos os portos,
oferecer-me o sextante e a bússola,
para que, em rotas a oriente da noite,
testemunhasse a dupla mendicidade

dos que sonham.
Sei, hoje, onde o mar adormece
descuidado: tão próximo da sombra
dos navios, que torna irremediável
o júbilo das ondas.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

27.2.07

Novamente um mar

Pascal Renoux

Novamente um mar. O entardecer
é a praia onde morremos juntos,
quando as nossas mãos se transformam
em veleiros que partem com o vento
e nós somos, apenas, o fruir
deslumbrado do silêncio.
Moramos entre pinheiros altos

e, do chão, apenas a relva vermelha
nos pode resgatar.
Aquilo que dizemos coincide

com a terra renovada.
Por isso, as searas hão-de vir
rodear-nos a cintura
e escreverão no pão a nossa fome.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

26.2.07

Todas as noites me despeço de ti

Salvador Dali

Todas as noites me despeço de ti,
como se existisses nos meus gestos.
Construíste, pedra a pedra,
o circuito fechado de um pretexto ausente.
Agora, já não és senão o falso alarme do meu corpo.
Ocorrem-me, até, palavras de um sossego
de pétalas e penso no amor
como se de uma fraude se tratasse.
Sou o pão e o vinho num festim de contradições.
Tenho, no sangue, um ciúme liquefeito
que transtorna os caminhos de exígua claridade
onde as palavras perdem o sentido.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

25.2.07

A noite

Ansel Adams

À altura de todas as estrelas
coloco as mãos para tocar o vento.
A lua é um fascínio que deixa atónito
o meu corpo, e lhe dá um cheiro
de fêmea fecundada ; um fogo posto
a deixar um luar, pleno, detido nos meus olhos.
Passeio-me, longamente,
pelo lado mais insensato das palavras
e digo o nome do último pássaro nocturno,
como se nele repetisse um primeiro adeus,
tão súplice, tão magoado.
Um tango exausto sobe-me pelas pernas.
Há, na minha boca, uma rua silenciosa,
por onde se chega à fragilidade dos lábios.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

21.2.07

Em seara alheia




ZECA AFONSO: TROVADOR
DA VOZ D'OURO INSUBMISSO



É de murta e de mar a tua voz
Com algas de canção estrangulada.
Aberta a concha da trova malsofrida
Saíste como sai a madrugada
Da noite, virginal e humedecida.

É de vinho e de pinho a tua voz
Com pranto de insofríveis flores banidas.
Mas é pela tua garganta que soltamos
As eriçadas aves proibidas
Que no muro do medo desenhamos.
Natália CorreiaIn: O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, 1º vol.
Lisboa : Círculo de Leitores, 1993

20.2.07

A marginalidade da luz

Manuel Fazenda Lourenço

Tão inesperado como um assombro,
um coro de tragédia urde, em meu peito,
a travessia da noite. Um barco sem cais,
prevê a morte de peixes transparentes.
De tanto olhar o mar, um marinheiro
enlouquecido, dançou em meus olhos,
ensaiando-me nos pés uma valsa perversa.
Por isso, de tempos a tempos, parto e regresso,
clandestinamente, sulcando no rosto
a marginalidade da luz.
As histórias do assombro com que vestia a lua,
terminaram há muito.
O meu sorriso guarda, inteira,
a desavença de meus dedos.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

19.2.07

Um homem desertou



Um homem desertou da hipótese de amar.
Escolheu a curva perigosa de um remorso,
onde escondeu o brilho dos seus olhos.
As suas mãos desaprenderam os afagos
e perderam o dom de receber.
Então, nunca mais ninguém o viu chorar,
porque, da sua boca, apenas sai, agora, um longo
deserto, por onde rasteja a sua sede.
Mas, este rosto que se esconde,
não é de um homem.
É um amor perfeito coagulado no sangue,
ou qualquer máscara a disfarçar
distâncias do futuro e a rejeitar
a linguagem de um incêndio de vozes.
Com que penas se descreve
um pássaro transparente?
Com que asas se soletram
os voos de lonjura e solidão?
Há quanto tempo a terra se inundou
nas margens do olhar.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

17.2.07

Agora que amanhece

Edward Hopper

Agora, que amanhece, decidi regressar à infância,
para sobreviver ao luto dos pássaros de luz.
Sob a protecção de um útero de fantasia,
transmudo-me em ave perdida na noite.
Por favor, não falem de sombras e de ausências.
Não perguntem a razão de cansaços e remorsos.
Não refiram nomes, nem datas, nem lugares.
Deixem, apenas, que a meninice volte de novo
e se reparta em íntimos silêncios.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

16.2.07

Chegaram as primeiras chuvas

Olivier Meriel

Chegaram as primeiras chuvas
e deixaram de ser verdes
os laços com que se urdem os desejos.
As violetas, que ladeiam os meus pulsos,
irão resistir a outro inverno ?
Que sombras me perseguem, na nocturna
memória de um litoral de búzios ?
Serão aves rasteiras a pernoitar
em meu sangue, ou morri de solidão,
com um navio, em chamas, entre os olhos ?


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

15.2.07

Reino da Lua

Pascal Renoux

Como se nada mais existisse além da noite,
debruço-me sobre o meu próprio instinto
e rasgo, nos lábios, um inquieto chamamento.
Tudo o que sei a sede mo disse,
quando a colheita dos frutos anunciou
uma seiva excessiva à boca das fontes.
Pelo lado mais denso das trevas,
aguardo a eclosão da luz em meu olhar:
subitamente urgente de ser dia.
Perdida diante das palavras,
uma profunda inquietude domina
os meus dedos, enquanto um pássaro errante
me traça, no rosto, a matriz de um rio intranquilo.


Graça Pires
De Reino da lua,2002

14.2.07

Repara




Li, no jornal, que as acácias incendiaram as ruas
e a manhã rebentou-me no peito. Deliberadamente.

Repara como se encheu de pássaros a árvore
que desenhaste no meu peito. Repara como,
lentamente, anulámos a distância das mãos
e equacionámos a linguagem do afecto na curva
dos braços. Repara como nos emocionamos com a vida
e, em segredo, nos olhamos sem qualquer pudor.
Repara.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

13.2.07

As tuas mãos

Caravaggio


Para que saibas. As tuas mãos vogando
como barcos: incessante navegação
pela liquidez dos lábios.
As tuas mãos. Digo. Para que saibas.
Pássaros incendiados a sobrevoar-me
o sangue. Um tropel de luz a demandar meu corpo.
As tuas mãos : o arado, a terra, a fome, o celeiro.
Digo as tuas mãos. Para que saibas.
As tuas mãos tão próximas de tocar a lua.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

12.2.07

Em seara alheia



GEOGRAFIA

Chegavas ao anoitecer, dizia alguém,
ao fim de um porto,
à hora das valsas e dos crimes, a meio da
vida,
quando as hélices paravam e no convés se
ateava o lume das paixões que perduravam
no tempo dos navios,
quando, ao longo dos mapas,
os dedos procuravam as palmeiras e os
países,
neste ou noutro mundo,
onde os terraços pareciam navegar sobre o
próprio mar.

Partias ao anoitecer, dizia alguém,
e na cadeira vazia,
na cal sem mácula que decora as ilhas,
resplandecia a face das luas, com o farol
de outrora,
sobre os recifes por onde vagueiam os
fantasmas da nossa solidão.

José Agostinho Baptista

In: Agora e na Hora da Nossa Morte.Lisboa : Assírio & Alvim, 1998

11.2.07

Instantâneo



Com os dedos pintados de branco,
ela ajoelhou-se na terra,
para chorar a solidão dos homens.
Que anjo se movimenta
no discreto brilho que paira nos seus ombros?
De noite, as janelas de todas as casas
hão-de incendiar-se.
Um clarão perpassará os olhos
dos que avistam o sul
através da evocação das pombas
evadidas do inverno.
Ela continuará de joelhos,
longamente chorando a solidão dos homens.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

9.2.07

Percorro os fonemas

Rene Magritte

Percorro os fonemas como se dançasse,
envolta numa túnica de água,
guarnecida de espelhos.
Sou Ariadne vestida de espanto.
Nos meus dedos cintilam longuíssimos fios
de um novelo de versos e de sonhos
com que me quero salvar.
Já não me lembro de que mitologia saí.
O meu labirinto tem a forma de um pássaro
conivente com a noite.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

8.2.07

Sem nenhuma razão



Sem nenhuma razão,
a denúncia de um farol,
devolve-me o vulto improvisado de um navio,
e adormeço embrulhada em canções sentimentais,
confundindo a infância com o amor,
como quem se encosta ao vento,
se afaga no escuro,
e se queima nos pormenores da vida.

De Conjugar afectos, 1997

7.2.07

Nas horas mais nocturnas

Alvarez Bravo

Nas horas mais nocturnas, desenho um círculo
e rastejo, através dele, até à sede.
Bichos sonâmbulos ferem-me a garganta.
Um barco alado irrompe da noite
e mutila a lucidez das mãos.
Um grito único ressoa no meu peito.
Mas, a planície enrosca-se-me na voz
e não me devolve o eco, que só o coração ouve.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

6.2.07

O perfil da minha infância

FoqStock

Meço o tempo na sequência de feições,
quase sem forma e avisto o perfil
da minha infância inventada.
Vejo-me no pátio de recreio
de uma cidade inocente.
Perco o pé na porta das surpresas
e corro, a toda a brida,
pelos segredos dissimulados
nos dedos que manejam
os papagaios de papel.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

5.2.07

Em seara alheia


Sobre esta terra me deito e digo sol
Digo-o na teimosia branda do casario,
onde à noite as mulheres,
todas de esperança vestidas,
enfeitam de pequenos búzios
a terrível margem do silêncio

Ah, ninguém já ousa semelhante Viagem!
Ou sequer, um frágil aceno,
como quem convoca, no rendilhado
das areias, a beleza de uma miragem;
espécie de visão fulgurante
onde uma porta auspiciosa se firma

Sobre esta terra me deito e digo sol
Digo-o com o feliz desalento que sempre trago,
com o desapego de duas mãos
na fértil aridez do DesertoVictor Oliveira Mateus
In: Pelo Deserto as Minhas Mãos. Sassoeiros : Coisas de Ler, 2004

3.2.07

A memória da ternura

Marc Chagall

A memória da ternura sobre o teu peito,
como um mel exótico.
Havemos de voltar à polifonia dos pássaros
com olhos de musgo e nenhum rumor
trairá em nós o silêncio das palavras
maduras, porque temos, rente ao rosto,
a límpida inclinação de um lago.
Morreremos apenas quando o amor
nos assustar mais do que a morte.
Agora, abrirei as mãos, para que possas ver
a passagem que vai dar ao rio da tua infância.
Mas, tem cuidado, amor,
porque não há nenhum deus dentro da lua cheia.


Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

2.2.07

Ignoro quantos navios partiram

Claude Monet


Ignoro quantos navios partiram,
ao primeiro sinal da estrela d’alba,
presos ao derradeiro sonho.
Venho de lugares onde me corrompi,
para tornar de pedra qualquer culpa.
Quero captar o brilho da sombra,
ou entender, apenas, a indecisão da luz,
com os olhos alagados de paixão.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

1.2.07

Vamos falar de poesia



POESÍA Y POEMA


La poesía es conocimiento, salvación, poder, abandono. Operación capaz de cambiar al mundo, la actividad poética es revolucionaria por naturaleza; ejercicio espiritual, es un método de liberación interior. La poesía revela este mundo; crea outro. Pan de los elegidos; alimento maldito. Aísla; une. Invitación al viage; regreso a la tierra natal. Inspiración, respiración, ejercício muscular. Plegaria al vacío, diálogo con la ausencia: el tedio, la angustia y la desesperación la alimentan. Oración, letanía, epifanía, presencia. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimación, compensación, condensación del inconsciente. Expresión histórica de razas, naciones, clases. Niega a la historia: en su seno se resuelven todos los conflictos objetivos y el hombre adquiere al fin consciencia de ser algo más que tránsito. Experiencia, sentimiento, emoción, intuición, pensamiento no-dirigido. Hija del azar; fruto del cálculo, Arte de hablar en una forma superior; lenguage primitivo. Obediencia a las reglas; creación de otras. Imitación de los antiguos, copia de lo real, copia de una copia de la Idea..Locura, éxtasis, logos. Regreso a la infancia, coito, nostalgia del paraíso, del infierno, del limbo. Juego, trabajo, actividad ascética. Confésion. Experiencia innata. Visión, música, símbolo. Analogía: el poema es un caracol en donde resuena la música del mundo y metros y rimas no son sino correspondencias, ecos de la armonía universal. Enseñanza, moral, ejemplo, revelación, danza, diálogo, monólogo. Voz del pueblo, lengua de los escogidos, palabra del solitario. Pura e impura, sagrada y maldita, popular y minoritaria, colectiva y personal, desnuda y vestida, hablada, pintada, escrita, ostenta todos los rostos pero hay quien afirma que no posee ninguno: el poema es una careta que oculta el vacío, prueba hermosa de la superflua grandeza de toda obra humana!
[...]

Octavio PazIn: El arco y la lira, México: Fondo de Cultura Economica, 1992