31.1.22

Em seara alheia

 



Sépia

Nos traços do dia
a palavra fora ou dentro
é impermanente
aguçada como a incandescência da luz

faz um silêncio tão grande
quanto as mãos no copo vazio

ardem na tarde ocasional
as cinzas e seu sopro vistos
através da claridade
na brisa transparente
do rio que vai arranhar o mar

Solange Firmino

De Quando a dor  acabar. Rio de Janeiro: Caravana Grupo Editorial, 2022


Em pré venda:  https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/quando-a-dor-acabar/


24.1.22

Memórias de Isadora XVI

Margarida Cepêda

Era uma lâmina, o erotismo 
com que exprimia os gestos 
abstractos exibidos nas coxas: 
pégaso a galopar deleites; 
cambiantes de uma ambígua 
tristeza rendilhada no meu peito. 

No limiar das manhãs nenhum apelo 
era tão longamente intenso como a dança, 
crescendo em cada pausa, em cada alento. 

As articulações manipuladas 
em ondas de volúpia. 
O penitente retomar em cada dor. 
O subtil entrançado dos suspiros. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 29

17.1.22

A extensão impossível das palavras



No pausado enredo onde absorvo a estranheza 
de uma meninice reinventada, 
irrompem branquíssimos lírios. 
Um tempo inicial inaugura o fulgente esplendor 
da lembrança em aromas de pretérita pureza. 
E vejo-me. Na extensão impossível das palavras. 
Na desmedida e espontânea alegria. 
Na doçura dos dias sem cuidados. 
Na tremenda adolescência dos desejos proibidos. 
E escuto-me para lá de mim, na fragilidade da voz. 

Hoje acordei e voltei a adormecer no teu colo, mãe. 
A manhã inclinada nos teus olhos purificou-me a respiração. 
Tenho o meu rosto tão perto do teu que, da tua ausência, 
apenas sei que é uma estrela a pulsar no firmamento 
e um fio de luz que procuro em momentos sombrios. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 19

10.1.22

Procurou alguém que gostasse de animais

Filomena Fonseca


Procurou alguém que gostasse de animais 
para lhe cuidar do cão. 
O lugar que escolhera para viver o tempo 
que lhe sobrava era só para pessoas. 
Uma espécie de abandono aferrou-se-lhe na pele. 
Porém, os pássaros começaram a demorar-se 
no parapeito da janela do seu quarto. 
Estremecidamente, começou a deixar-lhes sementes. 
E eles vinham. E chilreavam. 
E sobrevoavam a réstia de alegria que ganhara. 
Mas também às aves era interdito que ali pousassem. 
Sujavam tudo, lhe disseram. 
“Quem me dera voltar para a minha casa”, 
chorou baixinho. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 55

3.1.22

A casa permanece




Colhes uma braçada de alecrim e entras em casa. 
O coração bate em todas as paredes. 
Acolhes a intimidade da penumbra, 
o cheiro da lavanda em cada canto, 
a pulsação do passado. 
Quase tocas as faces familiares presas 
ao inquietamento das janelas fechadas. 
O desvio arbitrário dos dedos 
contorna a trama tecida na memória, 
sobre os nomes sem voz, afeiçoados à morte. 
Insinuada na linguagem do sangue, a casa permanece. 
Esta, onde entras para te reencontrares. 
Olhas os móveis. Fitas os olhos no chão 
e o soalho range com o aperto do olhar, 
como um eco dos teus passos. 
Demoras-te. Entregas-te à irrealidade 
de pretéritos rumores, ao alarme 
de uma distância que não alcanças. 
E recuperas o deslumbramento de seres criança 
e de saberes que de qualquer janela se pode ver o mar.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 44


Se alguém quiser ouvir o poema pode fazê-lo aqui:
                                            
                                                                    https://youtu.be/jR7-CMOf1RY