31.12.06

No rasto de memórias

Cartier-Bresson


É quase um voo,
a harmonia da música
que trauteamos em surdina,
por aí, sem nenhum destino,
de corpo iluminado,
no rasto de memórias
que só o coração guarda.
Impacientes. Tão impacientes.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

Bom Ano de 2007 !

30.12.06

Rente à inocência

Honor C. Appleton

As primeiras mimosas marcaram a fronte
da menina saída do livro de aventuras,
que foi largado a um canto da inocência :
graciosa personagem a crescer para a memória
como um feitiço ; íman sagrado que resgata
a fantasia e desenha um berço nas mãos
dos que são da mesma estirpe dos poetas.
A morada dos gnomos situa-se na estrofe
da cantiga que fala dos moinhos de vento,
ou ao rés da magia do mais minucioso gesto
com que se adornam os cabelos e as mágoas.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

29.12.06

É tempo de acender o fogo

A. Galasso

No encalço de pequenas alegrias,
faço do corpo um barco.
Amarro-o nas margens do silêncio
e divago, com urgência,
por dentro de um impulso incontrolado.

Tomo em meus olhos a transparência dos teus.
Quero sentir a tua noite a rondar-me o sangue,
quando dizemos: é tempo de acender o fogo.
Quero conhecer a excessiva inclinação da luz,
quando, desarmado, o coração, aguarda
que aconteça aquele fascínio de garotos,
à espera da festa prometida.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

28.12.06

A tarde cai lentamente

Manuel Fazenda Lourenço

Como quem olha pela última vez o destino
das sombras, a tarde cai, lentamente,
retomando aromas e sons
que a claridade do dia preteriu.
É, então, que ressaltam as emoções,
desordenadamente guardadas no peito
e os pássaros voam, quase loucos,
à procura do sol.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

27.12.06

Um desafio exibido nas ancas

Jeanloup Sieff

Dentro de si mesma, a noite
não tem contornos:
Serve-se das sombras
para repatriar exilados afectos.
Abro as janelas, de par em par
e caminho sobre as horas,
com jogos ilícitos presos à cintura.
Um desafio exibido nas ancas.
O vértice das pernas, a sobrançar um rio,
subitamente cheio.

Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

26.12.06

Procuro a cor da noite nos teus olhos

Mitch Diamond


Por caminhos do sul, a noite
adquire a tonalidade do mar.
Pressinto o hálito das manhãs claras
e tenho, no sangue, um caos incendiado,
como se fora terra exposta ao sol do meio-dia.
São horas de reinventar os aromas
que me anunciam um trajecto de espanto.

Procuro a cor da noite nos teu olhos,
como quem lambe a lua, devagar.
Depois, digo barco, digo mastro,
digo quilha e somos ilha propícia a navegar.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

25.12.06

Em seara alheia



EM QUE SE FALA DO MENINO JESUS


Fiz a maldade e olhei Jesus.
Ele baixou os olhos e corou,
e toda a gente julgou
que quem fez a maldade foi Jesus.


E todos Lhe perdoaram ...


- Obrigado, Menino! Mas agora
tira os olhos do bibe e vem brincar,
que eu prometo, pra não Te ver corar,
já não fazer das minhas.
Anda jogar ao pé das flores, no chão,
comigo, às cinco pedrinhas ...;
anda jogar, pra esqueceres
o preço do meu perdão ...

Sebastião da Gama

23.12.06

Natal

Giotto


Não ouço, daqui, o repicar dos sinos,
nem os coros de natal, nem, sequer,
o alvoroço, que o meu riso de criança
transportava. Eu sei : a infância
perdeu-se no lugar onde nasci.
Contudo, a um canto da memória,
está, ainda, resistindo ao sono,
a menina que fui. E, ano após ano,
aguardo, com ela, um menino jesus,
para sempre adormecido no meu peito.

De Quando as estevas entraram no poema, 2005

22.12.06

Com um barco descansando no meu peito

Edward Munch


Com um barco descansando no meu peito,
releio narrativas de viagens.
Prolongo o trajecto de Ulisses,
para que não encontre Ítaca
e divague, sem bússola, sobre o meu desejo.

Rodo, na língua, palavras solitárias e aguardo
toda a luz que antecede a madrugada, para falar
da peregrina ausência de teus olhos; para contar
teus caminhos sem pátria, tão a sul dos sentidos,
tão por dentro da solidão murada do silêncio.

De Uma certa forma de errância, 2003

21.12.06

O mais importante é seres feliz

Daeni Pino


O mais importante é seres feliz.
Disse-mo sempre minha mãe.
As palavras deslizando de seus lábios,
trazidas da mais sábia memória,
que só o coração ousa.
E, mesmo quando falharam
todas as vozes, que anunciavam
um silêncio cativo do medo,
ela mo disse: o mais importante é seres feliz.
O seu olhar sem sombras.
As suas mãos tacteando a luz.
Como se rezasse.
Ou levedasse o pão.
Ou recolhesse inesperadas emoções.
Sem medo de ser expulsa
do meu próprio assombro,
franqueio a alma
a um tempo de sedução
e pernoito num adolescente sossego,
ao abrigo de todos os fantasmas.

De Reino da lua, 2002

20.12.06

Para lá do tempo

Paul Strand


Para lá do tempo, as mulheres medem,
caladas, o incessante decorrer dos dias,
ao longo do rosto.
Uma certa demência na ponta dos dedos,
coalha o leite, nas velhas panelas,
onde fabricam o queijo fresco,
enquanto, pelos telhados, perpassam
as lembranças de paixões antigas.

De Quando as estevas entraram no poema, 2005

17.12.06

Em seara alheia



CARTA A MEUS FILHOS
SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio,
o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros,
o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade
e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente
quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas
para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido
ou não tinham consciência de haver cometido.
Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios
caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo,
que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade
em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

16.12.06

A cor da lua nova

Michael Banks


Com crisântemos entre as mãos,
manuseio ideias fixas
e pinto, de vermelho, todos os segredos
que guardo pouco à vontade.
Depois, ao comprido das horas,
escolho um lugar estratégico para esperar a alegria
e dou, ao coração, nomes contraditórios.
A passagem do tempo, traça em meus pés
um futuro peregrino.
Nenhum prodígio me está destinado.
Só a brisa, entrando pelo avesso dos sonhos,
infatigável e lenta, me deixa no olhar
a cor da lua nova.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

15.12.06

Flagrante delito nas teias do prazer

Picasso

Há um barco no hálito das mulheres.
As gaivotas seguem-no ao longo das estradas,
desenhando o mar nas curvas dos seus corpos.
Vestidas de branco,
festejam o parto das manhãs
e nada altera a transparência
com que aguardam os improvisos,
que não deixam ao cuidado dos deuses.
Flagrante delito nas teias do prazer.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

14.12.06

Hoje não me revejo no silêncio

Monica Stewart

Hoje não me revejo no silêncio.Reparto, vacilante,
as fórmulas de um raciocínio analógico,
que cultivo nos gestos solitários.
Ouço-me numa linguagem estética
e ensaio a alegria a levante
de todas as estações do ano.
Depois, assinalo, entre os dedos,
o recurso a uma dança verbal,
articulada num fascínio a prazo.
Há um estranho abrigo ao longo dos meus braços,
uma entrada secreta para pretéritas infâncias,
o limiar de um percurso tão arriscado como a vida.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

13.12.06

Os barcos

Kenneth Garrett
Nascer no mar alto,
na desordem das ondas.
Só por causa dos barcos,
as gaivotas se transfiguram,
quotidianamente.
Não dizer água,
sem refazer a nave,
sem rever a linguagem dos mastros,
cúmplice das velas e dos ventos.
Pressentir a alteridade das marés
pelo duelo ou trégua das mãos,
trémulas, clandestinas quase,
na demora da festa anunciada.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

12.12.06

Surpreendida por um caminho sem tempo

Ansel Adams

Surpreendida por um caminho sem tempo,
deixo que a lua se instale em minha pele,
lasciva e húmida. Habito uma ilha suspeita
de servir de abrigo a veleiros perdidos.
E digo: há um mar horizontal na solidão
de uma mulher, com as mãos cansadas
de sulcar distâncias em caminhos de espuma.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

11.12.06

Em seara alheia





ARTE DE NAVEGAR

Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito
e a noite se faz barco,
e a minha mão marinheiro.

Eugénio de Andrade

10.12.06

Com vontade de ser feliz

Alvarez Bravo


Hoje, confesso, acordei com vontade de ser feliz.
Amarrei, até, no pulso o amor-perfeito
que foi secando no meu peito
e retomei a velha máxima: não deixar
que qualquer angústia atinja o coração.
Um castelo de areia, é tudo quanto quero
para acostar o meu barco de papel.

Aproxima os olhos da vertigem e estremece
com a luz espessa, que brilha nos teus ombros.
No céu do teu país, as estrelas podem ser barcos,
se quiseres sulcar os mares do coração em desordem.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

8.12.06

As conchas

William Swartz


Saberemos, um dia, como são frágeis.
Sabem de cor o casco dos navios.
Confundem-se com as mãos, na maré-baixa.
Pressentem o fim do verão
pelo morrer dos peixes no labirinto dos corais.
Entre âncoras e algas, navegam.
Tão leves, que o vento se perturba.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

7.12.06

De forma ambígua

Alfred Gockel


De forma ambígua, avoluma-se no chão
a silhueta de uma sedução nunca relatada.
Fixo no espelho uma imagem múltipla de mim.
Comparo-me com quem sou.
Ensaio afectações, até à primordial aparência:
audaciosa, desnuda, porta vidrada
a todas as intimidades.
Através dos meus poros deslizam enigmas,
cujo fascínio não tem retorno.
Moro num nocturno simbolismo,
porque infrinjo todas as utopias
que me apontam signos luminosos.
É de noite que me sinto orfã de todas as mães.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

6.12.06

A encenação do mito

Picasso


Um pretexto entrelaçado nos dedos
desemboca, concêntrico, na encenação do mito.
Parecia imortal o Minotauro.
Um homem e uma mulher o debelaram.
Entre eles, um fio de fogo a iluminar-lhes
os corpos: terra virgem irrigada de volúpia,
ou bando de pássaros no topo da língua,
reacendendo a noite na alquimia das sombras.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

5.12.06

No deserto nascem os feiticeiros da sede

John Beatty

No deserto nascem os feiticeiros da sede.
Não há sombra que nos salve do lume dos lábios,
ou da sacrílega desordem
com que tropeçamos no passado.
Um ângulo raso de sangue afere,
em redor dos olhos,
o percurso atónito do coração.
O olhar despenha-se na alucinação
da madrugada em cio.
A adolescência duplica-se
no labirinto dos contrastes.
Partilhamos com os deuses
o tribal vinho dos desejos.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

4.12.06

Em seara alheia






Explicação do sorriso

A mãe disse-lhe escreve-me
De lá de longe para onde vais
E ela disse não é longe casar
E a mãe sorria cega de dor
E parecia de deslumbramento

Daniel Faria

3.12.06

De braços cansados de remar



De braços cansados de remar, optara, um dia,
por desenhar o marinheiro, com quem fugiu
na direcção do vento. Depois, quando a maré
subiu nos confins do corpo, as suas mãos
naufragaram num mar sem vestígios de barcos.
E uma alegria, adiada de muito longe, doeu-lhe
nos pés, duplamente exilados.
Agora, nas margens da lua cheia, há uma mulher,
em cujo rosto se passeia o lado mais claro da noite.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

2.12.06

O meu primeiro livro

Edouard Boubat

Não me lembro da cor dos meus olhos,
quando, em menina, me comovia
com heróis imaginários.
Mas, recordo-me bem, eu fui a princesa
do conto de fadas da minha infância.
Do âmago da emoção a contemplo,

prisioneira do mesmo luar
que me protegia da noite.
Sobre isto, não há lugar
para explicações metafísicas.
Tudo se esgotava naquele
mundo encantado de palavras,
que me apagavam do olhar
todas as sombras.
Depois, perdi a inocência, por descuido,
e deixei de ser princesa.

Blondina era o seu nome.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

1.12.06

Sabe que se pode morrer de solidão?

Dia mundial de luta contra a SIDA


Que mais acrescentar
sem que, nos gestos,
se tornem contraditórias as palavras?
Morrer de solidão.
Ficar exilado neste tempo cercado pelo medo.
As mãos mergulhando o vazio.
As vozes enrouquecendo de cansaço.
Um logro à medida do silêncio,
com nomes adiados sem aviso
e rostos marcados pela angústia :
fisionomias em sangue vivo,
exibindo o solitário instante da morte.
Saber que se pode morrer de solidão
e ficar de luto pela humanidade,
tão frágil e tão desprotegida.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

30.11.06

Do ponto mais alto da minha infância

Karl Soderlund

Do ponto mais alto da minha infância,
talvez se aviste o mar.
Deve haver um lugar,onde os barcos
se encontram para morrer sobre as quilhas.
Quem disse que nunca chega a anoitecer
nos olhos dos que ostentam um grito de aves
no declíneo das pálpebras ?
Com os pés exilados, guardo, no regaço,
os ventos e as sombras, para amparar as dunas:
tão frágeis à hora do poente.

Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

29.11.06

É irremediável a solidão

Jean Dieuzaide

Vieram de longe. A pé.
Na hora do sol sem sombra.
E ensandeceram à procura da fonte.
Agora vivem em casas de paredes grosseiras
e vestem-se de luto, à espera da morte.
É irremediável a solidão,
costumam murmurar baixinho.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

28.11.06

Como se fosse uma dança

Rodin

Como se fosse uma dança, um movimento de valsa,
tomo de assalto a idade do fascínio e dato, com ela,
a cartografia das noites para sempre adiadas.
Sedenta de outras luas, pinto os lábios de mel
e cola-se-me na boca um manifesto poético:
com gestos indizíveis, com mutismos excêntricos,
como se tivesse entre as unhas uma perversão qualquer,
a corromper a forma imprevista das palavras.
A íntima estratégia do olhar exibe, em meus lábios,
um silencioso desafio. Tenho a luz da manhã enrolada
nos olhos, um cheiro a rosmaninho à beira dos dedos
e um pássaro desvairado por dentro do peito.



Graça Pires
De Reino da lua, 2002

27.11.06

Em seara alheia


O jovem mágico

O jovem mágico das mãos de ouro
que a remar não se cansa muito
e olha muito depressa (como se fosse de moto)
veio hoje ficar a minha casa
Vivia longe longe já se sabia
tão longe que era absurdo querer determinar
metade campo metade luz
aí era a sua casa o sítio onde era longe
mesmo de olhos fechados (como ele estava)
e de braços cruzados (como parecia dormir)
o jovem mágico das mãos de ouro
que era todo de empréstimo à minha noite
que falou por acaso que nem se chamava assim
(segundo também contou) tinha vivido há muito
ele, que estava ali, era um falsário
um fugido de outro basta ver os meus olhos
nada sabemos de nós a não ser que chegámos
sem uma luz a esconder-nos o rosto
belos e apavorados de estranhos casacos vestidos
altos de meter medo às aves de longo curso
nem há noites assim não há encontros
ao longo das enseadas
não há corpos amantes não há luzeiros de astros
sob tanto silêncio tão duradoura treva
e não me fales nunca eu sou surdo eu não te oiço
eu vou nascer feliz numa cidade futura
eu sei atravessar as fronteiras das coisas
olha para as minhas mãos que te pareço agora?
No entanto surgiu como simples criança
conseguia sorrir sentar-se verter águas
com as maõs na cintura livre natural
ele que era um fantasma um fugido de outro
um que nem mesmo se chamava assim
o jovem mágico das mãos de ouro
desaparecido nu de todos os sítios da Terra

Mário Cesariny

25.11.06

Conta-se

Jean Dieuzaide


Falava de barcos e naufrágios,
da luz incerta das cidades,
de mulheres de longos e húmidos cabelos.
Cabia em sua boca a mudez dos outros
e, por isso, lhe escorria dos lábios
um visível silêncio.
O mar fascinava-o tanto como a lua,
ou como o cais onde amarrava o barco,
quando o vento exercitava
o seu modo desavindo de lhe afagar o corpo.
Conta-se que as ondas lhe rebentavam nos olhos
sempre que entristecia.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

24.11.06

Sempre um sonho nos arrasta

Manuel Fazenda Lourenço


Por todas as razões que definem o rumo
do vento, ou o tornam cativo nas velas
de um barco sem destino,
sempre um sonho nos arrasta.
Não, não quero ser salva de previsíveis
transgressões a um código de rotinas impostas.
Sou jovem. Hei-de sobreviver ao meu próprio caos,
antes que a noite seja mágoa no poente

e, por dentro das manhãs,morram os pássaros
sufocados de tristeza.
Hei-de sobreviver, antes que, de boca em boca,
circulem as palavras prisioneiras da ilusão,
ou o rio que me corre nos olhos

esgote o seu caudal em litígio com a nascente.
Hei-de sobreviver, porque existe um outro tempo:
livre, povoado de rostos que antecipam
o percurso da esperança.
Existe, sim, um continente soalheiro,
ao alcance do mais íntimo pressentimento da vida,
onde, em asas de gaivota, nascem os homens

reconciliados com a morte.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

23.11.06

A surpresa de olhar-te

Alvarez Bravo

Tu, que vieste sem eu te procurar, vem comigo.
Se souberes de cor a cor do vento

e quiseres decifrar, nas minhas mãos,
os gestos sem memória, vem comigo.
Como um recado quero explicar-te

por que motivo trago dentro de mim
uma longa praia, às vezes deserta,
outras vezes sufocada de gente.
É em mim que as ondas se quebram
quando o mar, intranquilo,
penetra o sossego das dunas.
É em mim que ecoam os gritos fúnebres
das mulheres, sempre que os barcos não regressam.
É em mim que nascem os lenços brancos do adeus.
É em mim que os búzios ressoam 
os segredos das marés.
É em mim.
Depois, a areia aquece as veias

e a respiração de quem chora amores impossíveis
e o corpo é um sacrário sem liturgia
a renegar o seu próprio destino.
Por isso, a surpresa de olhar-te.
Contigo permanece a alegria do riso,

branco de açucenas e de luar,
como uma festa de nascer.
Mas repara em nós : que brilho é este

que nos brinca nos olhos como se fossem lágrimas?

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

22.11.06

Dia de anos

Matisse


Se os pássaros sobrevoam as palavras
para saudar o dia, é porque há festa
nos olhos de quem nasce quantas vezes é preciso.
Quase se adivinha um tempo de lembranças
como um pretexto, uma fuga, um alibi
para escapar à fadiga dos sonhos minguados.
É então que os amigos trazem afectos
que o tempo não corrompe
e o vento se torna solidário das manhãs
por onde se regressa à infância.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

16.11.06

No lugar da minha sombra

Jon Edwards


Gastei as mãos amarrando barcos à infância.
Agora, no lugar da minha sombra,
cresce uma praia onde as gaivotas
aguardam que o sol
lhes devolva o brilho das pupilas,
ou as cegue para sempre.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

15.11.06

As papoilas secam-me nos olhos


Sem qualquer pudor, deixei a marca,
do meu andar apressado,
em todos os caminhos de esperas decisivas.
Algo envelheceu nos meus pés,
manchados pelo desacerto dos dias.
De tanto percorrer o chão da infância,
as minhas pálpebras encheram-se
da lucidez dos velhos.
Não creio que os dias se revezem,
inevitavelmente, iguais.
As papoilas secam-me nos olhos.
Sinal de sede, ou de um verão antigo
inquietando a boca ?


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

14.11.06

Quero um poema que fale de amor

Brancusi


Na nudez das mãos o poema tarda.
Ébria de um proibido mel recuso
dedilhar, ao acaso, definições simbólicas,
ou românticas entoações, a justificar
o ritmo das palavras. Cativa de outras falas,
rodeio-me de letras perturbadas para dizer paixão.
A semente e a seiva, o parto e a morte,
a montanha e a vertigem,
incendeiam-me os lábios
e fustigam os meus passos em direcção
a todas as madrugadas.
Quero um poema, ainda que imperfeito,
mas que fale de amor.
Que diga o corpo inteiro,
antevendo o júbilo das mãos.
Que diga a boca adjacente à boca,
e os olhos em festa, e a lua
ardendo, atónita, nas veias.
Um poema onde doa a ausência
dos abraços, onde se redima

a mendicidade do olhar.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

13.11.06

Em seara alheia



ORLA MARÍTIMA

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de núvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Ruy Belo

12.11.06

Uma história quase nossa

Degas




Enquanto me dispo, vão-se os teus olhos cobrindo
de perturbado gozo. Vem. Somos jovens de novo.
Podemos colher os medronhos, ainda molhados
pelo orgasmo da manhã e partilhar, palmo a palmo,
a secreta invenção do musgo.
Podemos transgredir o rio da cintura
e reajustar a nau que aporta sobre a boca.
Vem. Podemos roçar a polpa, lamber o suco,
tactear a raízes do fruto ou da fome.
Podemos arriscar as asas, adiar o voo
e, no vértice dos corpos, fruir a paisagem,
lentamente. Vem.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

11.11.06

Novembro

Edward Raymes


Quando novembro se esconde
no fumo das lareiras,
ou no cheiro das castanhas
acabadas de cozer,
a morte gosta de rondar as casas.
As mulheres, sobressaltadas,
procuram as camisolas de lã,
para que os filhos não tenham medo do escuro.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

9.11.06

Recorto do jornal

Menez

Recorto do jornal uma primavera antiquíssima
e, sobre o vazio, esculpo a notícia do meu nome.
Tenho a idade da menina

que adormece ao som da voz materna.
No meu peito há uma árvore,
onde prendo um baloiço para espiar os ninhos
e entrelaçar, nos cabelos, penas de todas as cores.
Estou só. Tenho valsas rasgadas nos pés
e asas, como línguas, em torno da boca.
Hoje cubro de branco outras sombras.
Entre os meus dedos e a lua

pairam pluviosos olhos.
Começa em mim a emboscada

dos lugares abandonados,
espreitando os amantes traídos.
A minha tristeza pode ser um barco,
ou, apenas, o corpo de um homem

vestido de relâmpagos azuis.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

8.11.06

Enlouquecemos

M.C.Escher
Enlouquecemos.
Acasalamos na pele o azar e a sorte.
A sociedade de consumo manipula-nos.
Tornamo-nos culpados dos equívocos,
da ruína, do nosso próprio envelhecer.
Que leque de ilusões se abre
ao pressentimento sôfrego de qualquer derrota?
Com que bússola se altera o gólgota dos sonhos?
Não existimos para consentir
frases inúteis em torno dos dias.
Com um gume na língua,
excomunguemos os deuses infalíveis
e falsifiquemos o tempo de morrer
dentro das fronteiras da vida!


Graça Pires
De Labirintos, 1997

7.11.06

Um abraço

Rodin

Pelos teus braços sei o ritual do fogo
no corpo apetecendo,
a harmonia das mãos: aprisionado gozo
que percorre e desnuda as veredas
deste quente sentir.
Não repares se me comovo sobre o teu ombro.
Trago comigo o espanto
de ser possível olhar-te sem remorsos.
Diz-me se é um barco
o que vejo nos teus olhos
ou se, apenas, imagino que regressas.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

6.11.06

Em seara alheia



O unicórnio

Ele veio da última
brisa da tarde.
Sua crina de sonho
sua leveza de infinito
pairavam
invisíveis
em plena praça
de domingo.
Nos canteiros
os gerânios sorriram
pombos voaram assustados
árvores festejavam alumbradas.
Tudo era felicidade
ante a visitação
daquela surpresa.
Ele veio do além
dos segundos
de um tempo
enraizado para lá
do próprio tempo.
Ele irrompeu do primeiro
anel de Saturno.
Suas patas de vento
seu dorso de núvem
levitavam
impossíveis
no pleno coração
do domingo.
No coreto
a banda
como nunca
tocou melodiosa sinfonia
balões abriram
suas cores pelo ar
namorados bailavam
plenos de esperança.
Um unicórnio
resplandeceu
súbito
o pleno sentimento
da infância.

Alexandre Bonafim

5.11.06

Hoje acordei conflituosa


Hoje acordei conflituosa.
Provocadora, talvez.
Um lenço de seda (ou uma ave?)
cerca-me o pescoço; reajusta
o decote da blusa ao esboço dos seios;
roça, no contorno dos ombros,
a tatuagem, quase invisível, dos sentidos.
Lá fora, a chuva cai. Tão devagar que faz sede.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

3.11.06

Volto a um lugar gémeo da memória



Volto a um lugar gémeo da memória
e retenho um diálogo a dançar-me nos lábios:
amo-te como no tempo em que o meu corpo
era uma ilha e nenhuma palavra me parecia
intrusa dentro da tua boca.
Amo-te. Vejo na tua face a pátria e o exílio
onde, simultaneamente, me sinto.
Chamo-te a minha fuga,

asas desenhadas no meu riso.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

2.11.06

Por detrás das estrelas procuro um amigo

Manet



Por detrás das estrelas procuro um amigo que morreu.
O seu passado pressagiava a subversão
e tomava o pulso da esperança.
Era poeta.
Na sua vida havia um muro branco,

onde cada um de nós podia escrever o nome.
Será a morte, passo a passo,
esta asfixia de recordações
que me torna deliberadamente comovida?
São astutos os mortos
com quem me cruzo na memória todos os dias.
Talvez sejam magos da vida que debitam,
ciumentos, a lembrança da eternidade,
num amor não correspondido.
Tudo é efémero longe dos retratos
que guardo, ao lado de pétalas secas
em forma de coração.
Numa fenda da paisagem
escondem-se as gaivotas
cansadas do ruído do mar.

As gaivotas e os poetas.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997