30.7.08

Do lado do rio

Carlos Botelho

Escrevo trovas no vértice de uma dança.
Sulco toadas, verso a verso,
no eixo dos meus pés.
A manhã começa do lado do rio.
Imperceptível. Tangível ao fascínio.
Olho os outros com a ritualidade
de quem permuta o sorriso e o risco de viver.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

25.7.08

Memórias de Dulcineia IV

Vermeer
Indecisa, seguro entre as mãos
a carta que um dia recebi:
sem remetente, sem data,
sem perfume.
Com uma haste de fogo
a queimar-me as pálpebras,
eu leio:
dia da minha noite,
prazer da minha mágoa,
norte dos meus caminhos,
estrela da minha ventura.

Os meus lábios, lentamente,
tocando as letras, lambendo
o sonho impresso no papel.
Um aroma de jasmim
devassando o ar.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

21.7.08

O mais secreto brilho do verão

Rachel Giese


Acordei assustada: tinha cortado
os pulsos para matar a sede.
Agora que a sede sangra nos meus lábios,
devoro, gota a gota, o hálito da terra,
ou o cheiro dos morangos,
ou, apenas, o sangue das palavras.
E arrasto o dia pelas sombras,
bebendo, devagar, o mais secreto
brilho do verão.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

16.7.08

Memórias de Dulcineia III



Quando fui ao teu encontro
levei no decote
um rebento de alecrim
para que me avistasses
pelo aroma.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

12.7.08

Em seara alheia



Nau de sonho

Quase roçando a areia, tão beijada
pelas ondas do mar, serenamente,
à luz avermelhada e fulva do poente,
eu paro... passa a minha nau doirada.

É nau forte a errar no mar fulgente,
coberta de luzes a amurada...
Pelo sopro das ondas embalada
parece o amor no coração da gente.

É nau de sonhos, um sonho enorme em flor,
buscando as horas mágicas de cor
em que o sol morre e sente-se a verdade.

Oh minha nau doirada espera um pouco
levas ao leme um timoneiro louco
e fica meu coração doendo de saudade.

Otília Martel
In: Menina Marota : um desnudar de alma. Lisboa, Papiro, 2008

7.7.08

Um rio nasce perto dos lábios

Edouard Boubat


Um rio nasce perto dos lábios
de quem improvisa a sede,
ou sabe usar as mãos para colher
as primeiras amoras do verão.
Às vezes, os frutos derretem-se
na boca, queimando a língua de prazer.
É assim que os amantes se redimem
de consentidos silêncios.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

3.7.08

Retrato improvisado

Picasso

Por dentro da tua voz, posso adivinhar
a cidade longínqua que te perturba o rosto.
Vieste de todos os lugares onde as emoções
se expõem do lado da desordem,
e chegaste com os pássaros transparentes
que, agora, repousam nos teus olhos:
água ou mágoa, a juntar os pedaços da tua sombra,
repartida por quantos silêncios te cercaram?
Não. Não te ausentes ainda.
Deixa-me reaver todo o júbilo das mãos,
na curva do teu peito, onde vejo uma pátria
cor de trigo, que me aquieta o corpo.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996