24.6.24

Intacto azul

Instituto Português de Serigrafia


Nenhum vestígio de interdição 
na memória de outras quilhas, 
intacto azul onde os peixes voam 
e flutuam no suco das anémonas 
ou na liquidez dos olhos das gaivotas. 

Sou a rosa dos ventos 
plasmada no vazio 
de um cosmos oculto 
e acharei, de muito longe, 
uma praia de barcos ancorados. 

Graça Pires 
De Poemas, 1990, p. 49

Este poema faz parte do meu primeiro livro "Poemas" que, no dia 29 de Junho, faz 34 anos que foi editado.

17.6.24

Em seara alheia

    •  

3.

Ninguém sai ileso
de uma claridade prematura.

Este quarto,
insurrecta metáfora
que espreita
a grelha costal do ébano.

O corpo, alambique de harpas taciturnas.
A pele alumiada
pelas habilitações literárias do gume.

Caducou
a biografia de antídotos
que expatriava o limbo.

Ser agora um homem
na potência crucial da bruma.
Arquivo de mitologias nefastas.
Mapa sem alvéolos.
Hora de ponta
no espaço tumoral.

Alberto Pereira
In: Tarkovsky: o sacrifício. Costa da Caparica: The Poets and Dragons Society, 2024, p.68
Prémio Ulysses 2023

10.6.24

Noite

Silena Lambertini 



Em plena noite delineava-se no chão
a luz derramada pela lua.


Era fácil ver as minhas mãos 
propícias a qualquer sobressalto 
no chamamento dos afagos. 
Eu ouvia os meus pensamentos 
como uma suplicação. 

E a perturbação das estrelas em meu olhar 
provocava uma espécie de cegueira 
no canto dos olhos. 

Como se a noite me entrasse pela casa. 

Graça Pies 
De O improviso de viver, 2023, p. 27

3.6.24

O lugar definitivo do silêncio

Magdalena Russocka 

De modo inútil arremesso 
contra um muro de barro 
os pensamentos banais. 
Interrogo-me obsessivamente 
sobre o chão que me espera, 
sobre o pó que afagará 
o corpo que é meu, 
sobre o poder das trevas 
debaixo da terra, 
sobre o rumor dos cemitérios 
quando a lua cheia incide 
nas lápides e nas cruzes de pedra. 
A morte. Eco perpetuado 
em passos rigorosamente 
lentos e apressados. 
Farpa suspensa sobre o coração 
como um estigma. 
Lugar ausente de luz 
onde se cai sem aviso 
nem tempo nem idade. 
O lugar definitivo do silêncio. 
O derradeiro gesto
 a servir de limite ao perfil do rosto. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.74