16.9.24

Serão de lume as palavras?

             

Susan Derges



A lua cheia incide-me inteira sobre a face.
As margens das páginas incendeiam-se. 
Serão de lume, as palavras?
Em movimento estranho, 
a dosear-se de ritmos, 
a escrita cria seu próprio grito silente.
Na ressonância do silêncio 
apanho-me em flagrante. Ilicitamente. 
Como num pecado original. 
E dentro de mim me escondo, 
indiferente ao deslize de cada hora.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2021, p. 64

8.9.24

Atrás do vento

 

Katharina Jung



Ainda que não sejam lineares
os caminhos percorridos
já esquecemos aquilo
que em cada etapa
foi tropeço queda
viagem inacabada.

Fincamos os pés sedentários
em avanços e recuos
até que o movimento da vida
nos torna viajantes e aventureiros
sem recear distâncias.

Às vezes corremos atrás do vento
numa espécie de estonteamento
sempre próximos do começo
dos primeiros passos
à procura do lugar onde fica
a casa em que nascemos.

Graça Pires

De O improviso de viver, 2023, p. 62

2.9.24

Em seara alheia




Lembras-te dos tempos azuis
intermináveis e belos?
Inesquecíveis nos corpos
um só momento e o azul
bêbado de nós;
eram tempos de florir
de partir à descoberta
de dizer sim quando foi sim
a palavra de dizer.
Lembras-te dos tempos azuis
no embalo terno e ousado
dos nossos mistérios?
A um passo
da curva acentuada
a estrada desnivela-se
e afunda-se pela montanha.
No malabarismo de viver
estranham-se ausências
revelam-se sombras
desaparece a sonoridade.
Consegui voltar:
incólume.

Paula Banazol de Carvalho
In: A tempo do tempo. - Lisboa: Poética, 2024, p. 16