14.10.11

O outono que nos coube

Dorothea Lange


Deixo que um veludo roxo
me toque as sobrancelhas
devagar, para descobrir
uma terra sem nome,
onde repito vezes sem conta
a noite perturbante em que soube
pela primeira vez que as lágrimas
dos velhos são cristais de quebranto,
lapidados na secura da garganta.
Se não fosse este país de medos,
estaria intacto o sossego dos mortos.
É preciso transformar o desalento
em cavalos à solta, neste destino
de outono que nos coube.
Tudo raso de esquecimento.
Tudo distante de amor.
Memória da lenha e do fumo
por dentro do lume.
Uma espécie de fogo posto
ondula nos meus braços
Não hesito em arrombar todos os gestos
e suspender a tristeza, na cadência da noite.
Não falo. É outono: lugar calado.
Espero só a explosão das novas cores do vento
dentro das minhas mãos, para romper o nevoeiro
de todas as paisagens líquidas.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994