16.9.06

Ortografia do olhar


Salvador Dali


Os barcos aproximam-se do quotidiano,
pelos atalhos da luz, no corpo da tarde.
Ao mesmo tempo, de cidade em cidade,
uma inquietante treva incendeia, noite adentro,
o ruído mitológico das maresias de outono.
Um navegante, sem bússola,
enforca-se no cais dos percursos para sul,
como se rastejasse a paisagem dos sonhos,
pelo lado mais escarpado da alma.
Ritual de sangue inadiável.
Rotas afogadas nas pálpebras.
Quilha de silêncio onde ficamos exilados e cúmplices,
reassumindo não sei que espanto,
enconchando o coração para nele caber
o estremecimento intacto de um rio.
A brisa, de feição, justificará o lentíssimo
tumulto dos remos junto à foz.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

2 comentários:

Anónimo disse...

De tã lindo que é, não tenho palavras!!!
Parabéns pelo seu talento.
Sou sua fã

Andresa

Poções de Arte disse...

Hoje vim voar aqui no comecinho...
Mais um belo poema.
Abraços e lindo dia.