29.1.09

Memórias de Dulcineia XII

Claude Simon
Anoto nas paredes
o eco de teus passos,
mensageiro do mais remoto
assombro em que te sei.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

24.1.09

Em fuga

Gregory Lanq

Somos agora quase tudo no desconcerto da cidade
que nos proibe de ver crescer as flores
e constrói grades sobre grades
para esconder os nossos medos em fuga.
Não podemos explicar a passagem
do tempo no rosto dos dias porque há um túnel
sem espelhos a ocultar-nos a inocência.
Conivente com o círculo vazio
que me esconde de mim partirei amanhã.
Em volta do teu olhar não há sinais
de surpresa ou de suspeita.
Apenas um aceno tão lento como o teu ritmo de viver
me antecipa a anunciação de um silêncio absoluto.
Sim. Partirei amanhã para aprender o idioma

das nascentes e escrever o teu nome
na água dos meus olhos.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

21.1.09

Da chuva

Edouard Boubat

No contorno das pedras, se imagina
a impaciência das águas no inverno,
quando a terra se encharca
do lamento dos ventos.
Carrego, comigo, um pavor de relâmpagos,
incendiados na rama das oliveiras.
E ando descalça, no ribeiro,
a procurar indícios da infância.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

16.1.09

Em seara alheia


UMA CASA EM PEDRA
Uma casa em pedra é um lugar onde se fabricam
os utensílios mais fraternos, talvez o lugar próprio
para descobrir a nossa vocação para plantar lírios
à beira das veredas, no caminho interior do lar.

Nela se redescobre a teimosa mão do poder das cinzas
à lareira, um jarro de água sobre a mesa, o pão amassado
na véspera, ante o alvoroço anónimo das crianças
ao odor das leveduras ainda frescas, transfiguradas.

Dentro das pedras se erguem as vozes vindas da planície
como se viessem da própria casa, do mais íntimo da terra,
misturando-se o apelo das águas e as narrativas
de animais nocturnos, obscuros, na fronte das montanhas.

E é daí que se lê a premonição das estrelas circundando
o destino de ervas e bichos que se fundem aos processos
por onde o vento soa, geométrico, um tempo sem data,
uma verdadeira abstracção de objectos nus, imaginários.


Vieira Calado aqui

In: Itinerário. S. Mamede de Infesta: Edium, 2008

12.1.09

Memórias de Dulcineia XI

André Kertész

Com as árvores e com as águas
partilho os meus pensamentos.
Manuseio estas palavras
como se fossem minhas
para as usar como protesto,
como absolvição: a boca
devorando a própria fome.
Aguardo um sinal que decifre
o nomadismo da memória
e rompa a cumplicidade do tempo.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

7.1.09

A guerra



A morte vem em todos os jornais.
É a razão de ser das reportagens.
Morre-se porque se ousa carregar na pele
a marca de diferentes etnias.
Morre-se em nome de um topónimo
no mapa do mundo, em nome do poder,
em nome de planos de paz.
Morre-se para baixar o stock das armas,
para testar a perícia dos beligerantes.
Morrre-se à queima roupa, como se a vida
estivesse entrincheirada num contra-senso
onde a noção de dignidade se perde.
Os refugiados só têm a voz
das cidades bombardeadas.
O pranto e o terror cativos do mesmo olhar.
As mãos doendo desalentadas.
Os rumores da guerra na respiração dos meninos
sitiados no silêncio dos abrigos.
Toda a demonstração de um equívoco, ou de um logro
na parábola que fala da fraternidade dos homens.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

2.1.09

Os pássaros

David Valle
Junto ao pelourinho da cidade
as gaivotas convivem com as pombas.
Que aventuras permutam entre si,
quando as manhãs de janeiro
se decoram de quantas viagens
nos cabem nos olhos?
Em seu lento voo, as gaivotas
transportam as habitações sem alma
para incendiar as quilhas
com que as pombas hão-de reinventar
a cúmplice peregrinação da luz.
Este é o tempo em que amamos
o desamparo das mãos.
Os mastros, donde avistámos o sul,
ainda são os mesmos.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996