13.1.20

Em seara alheia


99.

Às vezes a vida é uma mulher
a chegar a casa
depois de um dia de trabalho,
lábios sem cor, despenteada,
sacos de supermercado, 
a roupa em desalinho,
os sapatos na mão,
não, os sapatos nos pés,
não se atreve a tanto, 
a sonhar com descalçar os sapatos.
Uma mulher que
sem acender as luzes da casa,
olhos de gato no escuro, 
pode-se viver nos olhos de um gato, 
abre armários, gavetas, arruma o mundo,
o mundo pode ser um apartamento
com duas assoalhadas e as plantas por regar,
amanhã, amanhã sem falta rega as plantas.
Uma mulher que sem jantar,
lavou os dentes, não lavou a cara,
se enfia numa cama malfeita
puxou as orelhas à cama,
se a mãe visse isto puxava-lhe
as orelhas como se fosse uma cama.
Uma mulher sem ninguém,
a vida é só a vida,
a quem dizer boa noite meu amor.

Raquel Serejo Martins
In: Plantas de interior. Braga: Poética, 2019, p. 149

45 comentários:

chica disse...

Linda poesia compartilhada e fala da vida de tantas mulheres...Gostei de ler! beijos, chica e uma semana linda pra ti!

Sandi disse...

Isso é triste.

Cidália Ferreira disse...

Excelente poema, como sempre já nos habituou! Obrigada pela partilha! Amei

-
A solidão da distância ...
Beijo e uma excelente semana!

Micaela Santos disse...

Um poema muito interessante, sobre a vida, sobre as mulheres e os dias que são empurrados! Às vezes é assim, parece que a vida passa ao lado! O importante é ter consciência que temos o poder de mudar o que quisermos!

Beijinhos e boa semana!

Reflexos Espelhando Espalhando Amig disse...

Graça,
Esse é um texto espelho:
claro e explícito.
Lindo de ler e
difícil de aceitar que
é a mais pura verdade.
Bjins de boa semana.
CatiahoAlc./Reflexod'Alma
entre sonhos e delírios

José Carlos Sant Anna disse...

Wow, Graça, que partilha.
Bela fotografia nos dá Raquel depois de um dia de trabalho.
Faz um recorte e nos dá uma inteira representação da vida, da realidade.
Um beijo, minha querida amiga!

Roselia Bezerra disse...

Bom a tarde de paz, querida amiga Graça!
Uma tristeza imensa é não ter quem nos dizer "boa noite, querida".
Muitas mulheres vivem essa realidade sofrida sem motivo para acordar...
Um poema muito bem passada a real vida de algumas. Com exatidão poetica...
Tenha dias felizes!
Bjm carinhoso e fraterno

Natália Fera disse...

Ás vezes a vida é mesmo assim.
Gostei muito do poema .
Beijinhos e boa semana.

manuela barroso disse...

Apeteceu- me citar “ Anda Luisa , Luísa corre...”
Foi. E será sempre assim?
Excelente colheita , minha querida Graça!

The Padre disse...

I Really Appreciated The Boat Photo As Well

Cheers

carlos perrotti disse...

Muito obrigado, Graça, por apresentar a tão sonora voz de poeta que até hoje eu não conhecia. Bem vinda!!

Un grande abraço amiga.

JUAN FUENTES disse...

Son las realidades de muchas mujeres.

Maria Emilia B. Teixeira disse...

Uma mulher sem ninguém,
a vida é só a vida,
a quem dizer boa noite meu amor.
Triste poema, porém realidade de algumas mulheres que perderam o amor próprio.
Boa noite. Bjs.

Sinval Santos da Silveira disse...

Querida Escritora/Poetisa, Graça Pires !
A descrição desta Mulher, em forma poética,
traz-nos a figura de uma guerreira.
Conheço algumas, assim.
Linda partilha. Parabéns e muito grato.
Um carinhoso abraço, aqui do Brasil !
Sinval.

Fá menor disse...

Gostei muito!
Retrato de tantas mulheres algures.

Boa semana, amiga Graça!

Beijinhos.

bea disse...

espero eu que a dama solitária que se deita sem jantar em casa, o tenha feito nem que seja no café da esquina. Fome e solidão são dois comburentes perigosos.
Quotidiano bem descrito. lembra o poema, Luísa sobe que sobe, sobe a calçada.

solfirmino disse...

Muito bom, amiga!
Lembrei de um poeta maravilhoso, Carlos Drummond de Andrade, e um poema bem significante:

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu
Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

baili disse...

strikingly woven dear Grace ,such a beautiful choice !

it's sensitivity overwhelmed me for the moment
i think we all experience visit of this woman time to time ,our attitude sort out the real image while pondering within the fog of tiredness ,disappointment or boredom :) then we drag back our actual self and celebrate our being with delight for wisdom we are blessed with to do so
blessings to your days ahead my friend!

Isa Sá disse...

A passar por cá para conhecer mais um bonito poema!

Isabel Sá  
Brilhos da Moda

Ana Bailune disse...

Bom dia, Graça.
Poema lindo, verdadeiro e melancólico!

Ana Paula disse...

Um retrato em palavras de tantas, mas tantas mulheres!
Só a poesia para trazer tanta delicadeza e beleza aos cotidianos.
Adorei!

CÉU disse...

Não conheço esta poetisa, mas o poema que ela tão bem escreveu fez-me lembrar o de Gedeão: "Calçada de Carriche", embora com pequenas diferenças.

É assim a vida de muitas mulheres, que sobem ruas e calçadas, quase já não sentem nada, chegam a casa, desarrumada, cansadas, pesadas, abrem a cama desfeita, deitam-se, não dão por nada, e, nem ao menos uma palavra de amor, rotineiro ou não, dizem ou ouvem de alguém.

Os homens estão noutros planos, os da guerra, os da violência doméstica, os da pedofilia, enfim, atos ligados ao mal, pois o seu cérebro é perverso e complexo, com raríssima exceções.

Beijos, minha querida amiga, Graça!

João Santana Pinto disse...

Um retrato bem atual... se bem que já há alguns homens a partilhar ou a viver momentos parecidos, o mundo gira e a vida acontece...

Em todo o caso, é também, um pouco, a vida de "pobre"... (sorrisos)

Uma mulher com recursos, pode até não deixar de chegar a casa exausta, mas ao chegar, terá tudo no lugar e até, quem sabe a cama impecavelmente bem feita...

Um belo poema que deve ser levantado como bandeira por um Mundo melhor.

Beijinhos

Emília Pinto disse...

Um poema belíssimo em que se compara a vida com a vida dura de algumas mulheres; a vida não é nada justa e nem sempre é bela, como costumamos dizer. A muitos, ela não foi capaz de, no céu, acender uma estrela, pelo menos " para lhes provocar um brilho nos olhos tristes, ao admirá-la. Sempre escuros, o céu e o coração dessas mulheres e, digamos, crianças também, o que ainda é mais chocante. Fico muito zangada com a vida, quando vejo crianças sem aqueles olhinhos a brilhar e aquelas gargalhadinhas gostosas que enternecem e alegram nossas vidas; muitas mulheres, além do cansaço pelo duro trabalho, sofrem ainda a angustiosa incapacidade de darem um pão quentinho aos seus filhos e isso, creio, dói mais que o trabalho pesado e a cama por fazer. Gostei muito de ver aqui o poema de Carlos Drummond de Andrade que não conhecia e agradeço a quem o trouxe ao teu ortografia. Amiga, nem sempre o trabalho é duro só para as mulheres, mas a verdade é que são elas a " carregarem o mundo nas costas," o seu mundo familiar; só elas conseguem perceber a angústia no olhar dos filhos, só elas são capazes de descobrir o motivo, só a elas os filhos confessam os seus problemas. A atenção delas tem que estar focada no emprego, no trabalho em casa, nas refeições dos filhos e, para elas mesmas, pouco sobra, no entanto, querida Amiga, a elas e só a elas foi dada a mais significante das funções, a de ser mãe e isso compensa-a de tantos outros inconvenientes . Costumo dizer que troquei a minha profissão pela profissão de MÃE e nunca me arrependi. Já falei muitto, mas muito mais haveria a dizer sobre o infortúnio das mulheres, aqui no nosso pais e em todos os outros que compõem este nosso mundo injusto e cruel. Muita saúde para todos, querida Amiga e muito obrigada por partilhares este lindo poema duma escritora que não conhecia. Um beijinho
Emilia

Majo Dutra disse...

E vive tantas pessoas assim!...

Poesia de intervenção social sempre é necessária.

Dias bons, querida Amiga.

Beijos
~~~~~~~~~~~~

Margarida Pires disse...

Toda a mulher tem um jardim interior pronto para semear novos temporais. Para mais tarde recolher imensas lágrimas de felicidade.
É só preciso descobri - lo e seus olhos brilharão.
Ps - Uma mulher nunca deverá ser refém de si mesma.

mz disse...

A vida tem esse desalinho, tem o sonho, a luz e o escuro, o segredo das gavetas e das quatro paredes. Tem um procrastinar no caminho. Tem um ajustar de contas e um vazio vivo no interior de cada um.

Pode até ser o retrato de uma mulher á semelhança de muitos homens que o mundo tem.

Mirtes Stolze. disse...

Boa noite querida amiga Graça.
Um poema bem realista da rotina de várias mulheres. O amor esfriou em muitos lares. Um carinhoso abraço.

As Mulheres 4estacoes disse...

Olá, Graça!
Que belo poema, retratando o cotidiano de tantas mulheres.
Eu me reconheci na parte em que ela deixa as plantas para molhar no dia seguinte.
As vezes chego em casa tão cansada que é exatamente isso que penso: amanhã...
Uma linda partilha que gostei muito de ler.
Abraço
Sônia

Ana Freire disse...

Um retrato perfeito... da realidade de tantas mulheres... a quem muitas vezes, o sucesso numa profissão... é pago também, sob a forma de solidão...
Vi esta semana, a emotiva entrevista de Raquel Tavares, onde ela afirmava que neste momento se ia afastar da carreira dela, ligada ao fado... por esse mesmo motivo... o vazio e solidão, que a vida de artista, havia trazido, para a sua esfera pessoal... imediatamente, a associei ao conteúdo deste belo momento poético, aqui partilhado!
Um beijinho grande! Continuação de uma feliz semana!
Ana

Jaime Portela disse...

Gosto da poesia da Raquel.
Mas também gosto da sua prosa.
Acho que vai deixar a sua marca na literatura portuguesa.
Graça, continuação de boa semana.
Beijo.

Tais Luso de Carvalho disse...

Olá, querida Graça, pois a vida é bem isso que li e reli nesse belo poema; mais trabalho, vida sofrida do que alegrias e prazeres; a vida da maioria dos inquilinos desse planetinha é muito parecida com dessa guerreira que passa o dia em trabalhos diversos, por vezes 2 turnos de trabalho, pois chegam em casa e a lida continua. Poema forte, mas é a verdade de muita gente.
Parabéns à poeta e a ti por partilhá-lo. Apesar de tudo, o sonho ainda desponta.
Beijo, querida, um ótimo fim de semana.
Juntas em 2020!

Olinda Melo disse...


Querida Graça

Neste poema, 99., muitas mulheres poderão rever-se,
naquilo que as suas vidas se transformaram e em
que a solidão faz o seu trabalho de desgaste e
desencanto.

Parabéns à autora e a si, minha amiga.

Beijinhos

Olinda

Duarte disse...

Assim, com qualidade, dá gosto. É um prazer imenso ler poemas nos quais se sente, que expressam vida. Nele está aquilo que afecta a muita gente, tem sentido.
Os meus parabéns por trazer-nos aqui esta obra poética.
Aguardo a tua, da que gosto.
Abraços de vida, querida amiga.

Carlos Augusto Pereyra Martínez disse...

Qué buena crónica poética de una existencia sola, de mujer que apenas vive. UN abrazo. Carlos

Agostinho disse...

Gostei muito desta partilha.
Uma poesia dura.
A verdade no feminino.
Uma realidade insuspeita.
Tantas vivem essa ficção
numa clandestinidade disfarçada
à pressa, a cada manhã,
na máscara da maquilhagem,
afivelada num sorriso vago.
É vê-las no autocarro, no metro, nos elevadores
ensaiando gestos para usar adiante
diante de colegas, chefes, clientes...

Beijo, Amiga Graça Pires.

Teresa Almeida disse...

"a vida é só a vida,
a quem dizer boa noite meu amor."
É particularmente feliz este poema da Raquel, na visão que nos dá de uma mulher que resiste, apesar do profundo desgaste. A vida nem sempre nos dá rosas.

Boa escolha, querida Graça.

Ailime disse...

Boa noite Graça,
Um poema belíssimo que fala de tantas mulheres que nos dias de hoje ainda sentem no corpo e na alma o desamor da sociedade.
Muito obrigada por esta partilha poética, que merece reflexão.
Um beijinho e um ótimno fim de semana.
Ailime

tulipa disse...

OLÁ GRAÇA

não sei se já cá tinha vindo neste novo ano
não tenho cabeça, não começou muito bem
acabei de perder a minha prima-irmã
fiz um post de homenagem neste blogue
não sei se teve oportunidade de ler...

Lá entrei no 2020 sentada no sofá da sala sozinha!
Sem as minhas pessoas, as minhas referências.
Com os que mais amo em pensamento, apenas.

Evidentemente que, há sempre uma lágrima que teima rolar pela face,
mas eu mais teimosa que ela, logo limpo
e zango-me comigo mesma:
Não, não podes começar o ano novo a chorar...não é bom,
senão vais andar o resto do ano a chorar...
(digo de mim para mim)
mesmo recusando chorar, comecei a chorar
pela perda estúpida de uma pessoa boa com apenas 60 anos
não fazia mal a ninguém, mas foi tão maltratada.

Nesta fase da vida, nada exijo e peço muito pouco.
SAÚDE SIM é a única coisa que peço.
Uma entrada de ano igual às dos anos anteriores
triste e solitária
mas, entrei com Vida, ao menos isso.

Feliz 2020.

AH esquecia-me de dizer
fiz agora mesmo um post novo
onde faço homenagem a várias amigas de blogues
a Graça e o seu blog foram homenageados

se puder ver, aqui:
http://meusmomentosimples.blogspot.com/

Beijo da Tulipa

Erika Oliveira disse...

Que lindo poema, muito bonito mesmo.

lanochedemedianoche disse...

Cuantas Mujeres vivirán sin entender ese, no tengo nada más que a mi misma, es triste pero existe, muy interesante, gracias.
Abrazo

Sandra May disse...

São tantas essas mulheres...parece até que estão cumprindo pena sem ter cometido nenhum crime que justifique tamanha solidão!
Abraços!

Ana Tapadas disse...

Ah...calça-lhe botas e eu conhecerei essa mulher!
Muito interessante.

Beijo

Vanessa Casais disse...

Adorei Graça. Obrigada pela partilha não conhecia a autora.

https://primeirolimao.blogspot.com/

Beijinhos,
Vanessa Casais

teresa dias disse...

"Uma mulher sem ninguém,
a vida é só a vida"
Excelente!
A vida real virou poema.
Parabéns à Raquel Serejo Martins; obrigada a ti por partilhares.
Beijo.