23.9.07

É Outono

Georges Seurat

Faço um barco de papel e embarco, rumo às cenas
baralhadas de um sonho qualquer.
É outono e não sei dizer quem sou ou o que quero ser.
Os meus olhos são rios de palavras afogadas,
onde só posso ver a minha imagem disfarçada de mim.
Percorro então, uma a uma, as horas por viver
e descubro um arco-íris na minha boca
a gritar uma insónia íntima.

Dentro do meu sono ainda me perturba
a tua imagem, miragem do meu deserto
vencido, demora da minha espera.
Era feito de mármore o silêncio
dos teus olhos e por ele escorriam
as palavras que eu dizia, como se fossem água.
Esse silêncio doeu na minha voz,
quando as minhas mãos violaram os gestos
e, entre nós, ficou intacto o diálogo.
Sei agora a cor exacta do vinho
com que brindei à primavera em nome
da presença que tu eras e hoje, ao recordar-te,
sublinhei o sentido dos sonhos e do vento.
Foi o tempo em que a neve presente no teu rosto
gelou os meus lábios até à transparência.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

24 comentários:

Teresa Durães disse...

quando as memóriuas tapam o nosso intimo penso que nos perdemos. reencontrar, (re)centar e o mundo está dentro de nós

um beijo

Anónimo disse...

Tão belo, Graça!
Como é possível falar da separação, da mágoa, do desencanto, de forma tão poética e tão delicada nas imagens lindíssimas que crias!

Anónimo disse...

Simplesmente bonito...
LP

Anónimo disse...

http://palavrascomfim.blogspot.com/
Visite...LP

Maria Carvalhosa disse...

Não imaginas o arrepio que senti!
Lindo, lindo! Que bom ler-te, Amiga!

Beijos.

Manuel Veiga disse...

são belas as viagens. ainda que em barco(s)de papel!

... e a lucidez o vinho. na sua cor exacta!

Anónimo disse...

Que haverá no outono que nos impele a estes olhares longos para dentro e para trás, a estas viagens agridoces?
Apesar de tudo, a memória é uma dádiva.
Um beijo, uma boa noite

Isamar disse...

Belo! Sublime! soberbo!
Palavras e imagem.
Beijinhos

hora tardia disse...

vim embarcar o meu olhar "vagabundo" nesta ortografia outonal.


tb agradecer a atenção que tem dado a um piano "mudo".


_______________abraço.

Joana Roque Lino disse...

Olá,
Descobri-a através da HFM. Gostei muito do que escreve e voltarei certamente.

PoesiaMGD disse...

Tão belo e delicado... Fantástico!
Um abraço

Rui Caetano disse...

Navegar num barco de papel alimenta os anseios inquietos dos Homens.

hfm disse...

Um poema de poemas feitos onde a largura do tempo se estende na memória. Belíssimo e ainda por cima servido de Seurat.

Anónimo disse...

Um dia, o primeiro poema dum livro deixou-me sem palavras.
Já passou algum tempo mas é sempre bom reler aquilo que nos sabe bem.
É Outono.
Vou mais uma vez procurar esse lugar.

um beijo.

© Maria Manuel disse...

voltei para reler o poema, de que gosto mesmo muito!

Graça, gostava de colocar este poema no meu sítio.
posso?

(se entenderes que não, eu compreendo)

Licínia Quitério disse...

"Era feito de mármore o silêncio
dos teus olhos e por ele escorriam
as palavras que eu dizia, como se fossem água."

E quando a neve veio...

Este Outono de balanços!

Um beijo.

jorge esteves disse...

Ortograficamente fico dividido pelas palavras e pelas imagens; enquanto dou graças ao Acaso...
abraço.

Luis Eme disse...

O Outono é propicio a viagens, em barcos de papel, com todos os perigos e fragilidades das folhas simples...

vieira calado disse...

Aqui encontro um blog de realmente muito boa poesia.
Um abraço.

Isamar disse...

Deixo-te beijinhos e desejo-te um fim de semana calmo, alegre, pacífico...

Alexandre Bonafim disse...

Esse não é belo, é muito mais. É o próprio esplendor. Beijos. Saudade.

Graça Pires disse...

Quero agradecer a todas as amigas e a todos os amigos as vossas generosas e sensíveis palavras. Os que vieram a este espaço pela primeira vez, espero que voltem.
A todos digo:
"Acendo as mãos para aquecer o olhar de quem atravessa apressadamente o outono. Um morno ruído desdobra o voo quebrado dos plátanos, obstruindo um caminho, desenhado a carvão, por onde passeio, à beira dos acontecimentos e das sílabas, alheia a tudo, como se pudesse passar o resto da vida à sombra do pólen das palavras e adormecer no confluir da transparência e da luz, neste outono: lugar frágil."

Especialmente para ti Pedro, um grande beijo. Sei que, de todos os meus livros, este é o teu preferido. Foram lindas as tuas palavras, meu filho.

Pêndulo disse...

Obrigado pela visita ao meu cantinho... ainda bem que gostou!!

eu também gostei deste... :)))

beijos

solfirmino disse...

Esse poema fala de coisas sobre as quais gosto de escrever: Outono e Insônia.
Belíssimo!