19.3.07

Em seara alheia


Contacto

Eu chamo-te e tu não me ouves.
Estarás atrás daquela estrela, disfarçado,
ou oculto numa nebulosa
à espera da palavra que te resgate?
Eu chamo-te e tu talvez me oiças
mas não possas responder-me
porque o vazio da noite não permite
a partilha de sons e de afectos
a uma tão grande distância.
Às vezes bastava-me olhar para o céu
para ter a certeza de que observavas
todos os meus gestos, todos os meus passos.
Era como se as nuvens guardassem
um sorriso teu no seu bojo de ventos e de chuvas.
Adormecia tranquilo no agasalho dessa crença.
Guardo numa gaveta da escrivaninha
a tua carteira, os óculos, o lenço
que usavas no dia em que partiste.
E já lá vão tantos, tantos anos.
De repente dei pela falta dos teus telefonemas,
das perguntas inquietas que me controlavam
as horas e as errâncias. Tinhas medo,
um medo terrível de me perder,
e afinal fui eu que te perdi. Dizem que foi
a vontade de Deus. E agora eu chamo-te
e tu já não me ouves. Ou será que ouves
e que a pequena estrela pálida, trémula, esquiva
que me ilumina a manhã é apenas
uma forma de o céu escrever a palavra Pai?

José Jorge Letria
In O Livro Branco da Melancolia. Lisboa: Quetzal, 2001

2 comentários:

Anónimo disse...

autor vencedor do prémio municipal de poesia nuno júdice, atribuído ontem pela câmara municipal de aveiro ;) (obrigada pela visita) *

Graça Pires disse...

Obrigada pela notícia. Fico muito contente.
Um abraço