12.9.08

Em seara alheia



Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor, que te procuram.

Herberto HelderIn: Ou o poema contínuo. Lisboa, Assírio & Alvim, 2004

20 comentários:

Paula Raposo disse...

Sublime!! Herberto Helder que eu adoro...incondicionalmente!! Muitos beijos para ti, Graça.

© Maria Manuel disse...

adoro este poema!

hfm disse...

Sempre ele, amiga; um escultor de palavras!

Unknown disse...

Mas que força poética existe maior do que « ...dentro de mim é o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor...que te procuram?!!!»
Obrigado por este duche de águas de ouro e bom fim de semana.
Um abraço.
Eduardo

isabel mendes ferreira disse...

o GRANDE.



para mim.


especial. de sempre.


para sempre.




grata Graça.



pelo muito.

Aeroporto de Alcochete disse...

Prometo que vou manter oculta a minha perspectiva actual sobre poesia.
Enfim, já vivi na cidade tempo suficiente para esquecer o campo e as pessoas, agora preciso descobrir a verdadeira forma de comunicar com o mundo.
Posso convidá-lo(a) a visitar um novo espaço?
Como a mudança é uma constante da vida, tal como o sonho, Vendo Lisboa ainda terá pouco para ver, mas anseia pela motivação decorrente da sua visita.
Obrigado

Luis Eme disse...

eu sei o que te dizer, Graça.

o Herberto continua a brilhar Primavera da poesia e tu és uma flor do jardim dos poetas...

http://cinzasdecarvalho.zip.net disse...

Oi, querida! Fiz lá as modificações aconselhadas. Obrigada por tudo.
Herberto Helder escreve maravilhosamente.
Escolheste belíssimo poema.
Bj. enorme.
Bárbara Carvalho.

De Amor e de Terra disse...

Ima beleza imensa, esta forma que Herberto Helder tem de sizer as coisas.
Obrigada pela partilha.

Beijo

Maria Mamede

Ailime disse...

Um poema intenso, que vou voltar a ler, para melhor saborear as palavras nele contidas!
Bem-haja.
Um beijo.

Anónimo disse...

"não sei dizer", "não sei dizer-te sem milagres", repete o poeta. Intensidades próximas do indizível, ou que têm de se expressar assim, somando imagens fantásticas, brilhantes, íntimas, surpreendentes, impossíveis de serem reduzidas a uma paráfrase. É um poema lindíssimo.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

HErberto Helder, único e inimtavél...

beij

Anónimo disse...

Palavras que vão directas ao coração...
Muito, muito lindo este poema de Herberto Helder.
Beijo.

Teresa Durães disse...

HH não é um dos poetas de minha eleição

dona tela disse...

Amoroso, amoroso é o post que acabei de fazer.

Muitos cumprimentos.

Licínia Quitério disse...

Para ler com a alma ajoelhada.

Obrigada.

Beijo.

Monte Cristo disse...

Olá, Graça

Estou a tentar voltar à vida. Talvez a poesia ajude, não sei.
Este primeiro passo, depois de uma longa e dolorosa ausência, já é - pode ser - um bom sinal.



bjs

Parapeito disse...

Excelente escolha O Helder merece:)

Gostei de o reler aqui ****

Elizabeth F. de Oliveira disse...

Lindo, Graça, quanta poesia em tão pouca prosa. Poesia suficiente para transbordar o meu coração.
Tu consegues transformar 'Em seara alheia' em um momento de raro prazer.
Beijo grande.

L.N. disse...

Herberto Helder é o maior dos poetas vivos a escrever em português, na minha opinião.



"Ou o poema contínuo" tenho procurado e procurado e procurado e não encontro em lugar algum. Graça, por acaso sabe de algum cantinho que possa ter esta reliquia que tanto gostaria de ter?

beijos