26.2.08

Em seara alheia



DÁ-ME DE BEBER...

Dá-me de beber em tuas mãos
uma nesga do céu
sem coares as nuvens que passam.
Morde (se quiseres)
a romã entre a rosa e o amanhã.
Prisioneira de um mito
liberta-me (se quiseres)
na próxima primavera:
puxa-me as verdes tranças
arrebata-me do trono e de seu rei obscuro.
Leva-me (se quiseres) em teus braços
para onde fores e seremos primavera.
As primícias serão tuas:
as mais belas campânulas
tilintando ouro ao sol
prata sob a lua.
O que dizer do que seremos
se mudamos a cada gesto?
Dança pura.
Dá-me de beber em tuas mãos
uma nesga de céu
sem coares as nuvens que passam.


Dora Ferreira da Silva
In: Cartografia do Imaginário. São Paulo, T. A. Queiroz, 2003

21.2.08

Regresso à praia húmida

Edouard Boubat

De costas voltadas para a fadiga dos dias,
regresso à praia húmida onde nasço
quantas vezes eu quero,
livre do movimento das sombras
que influenciam o percurso dos meus olhos.
No leme de todos os barcos leio o protesto
quotidiano dos que nunca se rendem
às imposições previstas em todas as pátrias,
dos que não aceitam morrer sem saber porquê.
E volto, de repente, à absoluta nudez
das árvores despojadas de pássaros,
onde o vento sopra tão rápido
como um rastilho de fé.
Passam, assim, diante de mim
contos de fadas, visões,
ou apenas remorsos sem memória.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

17.2.08

A desordem da noite

Peter Wileman


Quase tudo se articula na sorte
ou na desgraça de resgatar memórias,
como um pretexto rebelde,
marginando os dias.
Quantas vezes sobrepomos as mãos
para chorar amigos, ou aprisionar
a infância, ou dizer, devagar,
palavras intranquilas,
tantas foram as sombras sobre os ombros.
Não inquiram, portanto, com que silêncios
se nomeia a desordem da noite.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

13.2.08

Enamoramento

Edouard Boubat


Agora, que os teus e os meus olhos
se entrelaçam, em que penas se movem
os meus dedos que, de lentos pássaros,
povoam minhas mãos?
Inquieta-se a minha sombra sobre a tua,
quando o sol da tarde nos anuncia
uma festa partilhada e, dos lábios,
enrodilhados no riso e nos beijos,
desliza um súbito mar, onde quase
se pressente o naufrágio dos corpos,
deslumbrados, já, de tanta água incendiada.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

9.2.08

Uma amiga

Hopper

Para a minha irmã

Não sabes se é possível recolher
as últimas estrelas da noite,
para amenizar o peso do silêncio.
Mas, do cume da manhã,
avistas sempre, tu o dizes,
um atalho para a felicidade,
porque as tuas mãos respiram
a irrecusável posse de uma alegria
capaz de multiplicar a voz,
para dizer que, em todos os rostos,
desagua um rio navegável,
onde importa saber ser barco,
ou remo, ou, simplesmente,
o rumor da água corrente.
Ao acaso, repartes o gosto de viver,
sem a lógica de coisa calculada
e sem nunca ficares de fé perdida,
como se usasses o optimismo
em legítima defesa.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

Atenção: há mais poemas meus na voz de José-António Moreira em Sons da Escrita

4.2.08

Um palco de tréguas

André Kertész

Um palco de tréguas.
Esgotei as deixas
que sustentavam o diálogo.
Espectador de mim, aplaudo
e pateio as múltiplas representações
dos dramas, das comédias e das farsas,
encenadas na caligrafia do impossível.
Abuso dos monólogos porque uso na voz
a gargantilha alucinada do silêncio.


Graça Pires
De Labirintos, 1997