30.12.09

A passagem do tempo

Manuel Alvarez Bravo


Dantes a passagem do tempo deixava-se adivinhar
no contorno imperfeito das pedras que pisamos.
Os antigos conheciam os segredos dos caminhos
e dos muros e contavam velhas estórias
de sustos e de choro.
Agora, como marionetas cujo fio mágico
irrompe, giratório, à boca da cena,
assim a dança dos dias no calendário.
Com sinais de urgência.
Com movimentos apressados onde o caos se instala.
Com vozes que são águas tão fundas sob o peito
que perturbam o imenso silêncio das estrelas.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

18.12.09

NATAL

Michelangelo


NATAL

Leio o teu nome
Na página da noite:
Menino Deus...
E fico a meditar
No milagre dobrado
De ser Deus e menino.
Em Deus não acredito.
Mas de ti como posso duvidar?
Todos os dias nascem
Meninos pobres em currais de gado.
Crianças que são ânsias alargadas
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos.

Miguel Torga
In: Diário X, 24 Dez. 1966


Que venham os anjos que nos guardam refazer em nossas mãos um presépio de amor.

Que celebrem em nosso olhar o desejo da luz, a promessa da paz, a certeza do bem-estar.

Um Bom Natal e um Novo Ano Melhor !

12.12.09

Memórias de Dulcineia XVII

Claire Rydell


Porque os sentidos se furtam
a qualquer ausência sei
que nunca me aconteceu
a tua morte.
Teus gestos recordo.
Teu nome confundo
com os sonhos.
Em teu exílio
construo meus caminhos.
Diz-me o que perturbou teu olhar,
o que te devorou a inocência
do sorriso, o que esvaziou
tuas mãos de tanta sedução.
Diz-me que moinho de vento
te moldou, no corpo,
essa imprevista forma de loucura.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

5.12.09

Em seara alheia


É DAS FONTES QUE FALO!

Falo das casas de rosto contente virado para o mar,
da procura apaixonada das conchas raras
abandonadas na vazante,
do mistério nunca desvendado da canção dos búzios,
da postura majestática dos cactos com flores
vermelhas sobre as dunas,
falo da robusta madureza do teu corpo
aberto como um suspiro
liberto de cansaço no tempo certo!...
É das fontes que falo,
insubstituíveis, teimosas fontes
escondidas, esquecidas, não lembradas,
mas avidamente luminosas,
sequiosas nos olhos que procuram, se procuram,
no enleio confusamente inevitável
de quem caiu de borco das estrelas nos labirintos
e becos da cidade,
onde as crianças sabem
não haver fronteiras claras entre a vida e a morte,
entre o riso e a tristeza,
e acariciam silenciosamente, com mãos de jade,
as lágrimas que parecem tombar do céu,
mas que brotam violentamente da terra!...

Eduardo Aleixo
In: As palavras são de água. Lisboa: Chiado Editora, 2009