29.4.19

A escassez do amor e do pão de cada dia

Dorothea Lange

Desconhecemos as cicatrizes das mãos
que manejaram a mó dos moinhos
e a fadiga das que mondaram a terra,
num ritual repetido infindavelmente.
Nada sabemos das mãos gretadas
pela acidez das resinas e do pó,
pela dureza da enxada e do arado.
Abandonadas há muito tempo,
as alfaias antigas ainda rangem
nas mãos dos que pisam os trilhos
das cabras em lugares desamparados.
São mãos onde se lê a escassez
do amor e do pão de cada dia.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 35

22.4.19

Escrever Abril

Licínia Quitério


Era uma vez uma cidade
com homens a navegar na liquidez das ruas,
espingardas com mulheres a tiracolo,
sorrisos a explodir à boca dos canhões,
gritos e cantares da cor dos cravos.
Foi o dia do livro inicial
e toda a escrita foi possível.

Licínia Quitério, 2019

15.4.19

Dos templos antigos



São de granito cinzento 
as cúpulas dos templos antigos:
a música profana e sagrada
no rebordo das pedras.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011, p. 7

Desejo a todas as Amigas e a todos os Amigos que me visitam, uma Páscoa cheia de bênçãos e de paz.

8.4.19

Lentamente



Lentamente.
Como se fossem intermináveis os dias e as luas.
Como se o sedentarismo dos antigos nos habitasse.
Como se cavássemos no coração
o milagre das manhãs.
Como se a terra fosse um espelho
de água ou um coração solar.
Lentamente. Muito lentamente.
Porque basta a urgência de um grito
sem contornos para que a pétala mais ilesa
se corrompa, para sempre, em jardins moribundos.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 29 

1.4.19

Tão frágil a construção do silêncio


No verão todas as manhãs são belas,
dissemos um dia, antes de sabermos
como nos pode asfixiar o áspero sangue
das correntes esfarrapando a espessura do lodo.
Tão frágil a construção do silêncio!

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018 p. 55