29.9.08

Memórias de Dulcineia VII

Goya

Quero que me devolvam o meu riso.
Inocente ou perverso, pertence-me.
Ouço-o, ainda, pela infância
fora quando ecoa na remota
memória da alegria.
Ouço-o na hora
de desocultar segredos,
golpeando palavras
ou inesperados silêncios.
Ouço-o, mesmo sabendo
que já não é possível
forjar, na voz, o breve instante
que vai do espanto
à original pureza do olhar.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

25.9.08

À míngua de um abraço

Henri Cartier-Bresson

Como por aqui se afirma os rouxinóis saltitam
de árvore em árvore com medo da morte
dissimulada nos ramos das figueiras mais estéreis.
Persigno-me ajoelhada no restolho entretecido
pela meia-luz do poente.
A fonte que me atravessa a boca
confina, agora, com a mágoa das mulheres
que, à míngua de um abraço, envelheceram.


Graça Pires
De Quando as estevas entaram no poema, 2005

22.9.08

Reencontro com o Outono

Gérard Castello Lopes

Reencontro-me com o estado primitivo
do outono e deixo-me seduzir
pelo paradoxal destino das gaivotas.
Dentro das minhas mãos ávidas de ter
encalham navios vindos de todos os mares.
Depois exibo nos pulsos as marcas
de naufrágios inexplicáveis
enquanto percorro um cenário vazio
no mutismo de árvores que se despem
lentamente com o sopro magoado do poente.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

18.9.08

Apesar da sede

Picasso
Tudo podia ser mais simples.
Mas a infância fica tão longe
e os espelhos começaram
a gritar-me uma inocência
que deixou de ser minha
para sempre.
O que quero dizer
acompanha, devagar,
o movimento do sol.
E são cada vez mais lentos
os passos que me levam
na direcção das nascentes.
Apesar da sede.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

15.9.08

Em nome do teu nome

Alvarez Bravo

Em nome do teu nome, invoco o sul do silêncio
e arrimo o corpo ao vagar dos teus dedos.
Depois, deixo que me invadas, poro a poro,
que me cerques, me sacies e que a luz ilícita
dos teus olhos me ajuste ao teu abraço.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

12.9.08

Em seara alheia



Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor, que te procuram.

Herberto HelderIn: Ou o poema contínuo. Lisboa, Assírio & Alvim, 2004

8.9.08

Memórias de Dulcineia VI


Não vislumbro
qualquer sinal de enleio
nos meus ombros.
Ao longe envelhecem,
em mim, as planícies
cobertas de giestas.
E lembro os dias
em que ouvia falar
de um homem:
quase um peregrino,
quase um nómada,
quase um louco.
Um homem deambulando
no rumo dos animais bravios
que povoavam sua mente.
Uma vasta mancha de sonhos
me perturbou para sempre.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

5.9.08

Nenhum tumulto

Rachel Giese
Nenhum tumulto denuncia a hesitação
das mãos colhendo os frutos.
Apenas o restolhar das folhas
no extremo do estio, chora,
em surdina, a privação do sumo
e da polpa, no bico dos pássaros.

De Quando as estevas entraram no poema, 2005

2.9.08

Penélope


A pouco e pouco, aloja-se-me
no coração a cicatriz da espera.
Alheio-me da minha cronologia
porque o passado se tornou permanente.
Caminho tão perto do mar,
que Ulisses avalia a direcção
do vento pelos vestígios
do meu respirar, lento ou apressado.

De Uma certa forma de errância, 2003