28.1.18

Sede


katharina Jung

Aproximo os olhos do deserto
e reconheço que só uma sede antiga
fica suspensa do regresso da chuva
ou da proximidade de um rio.
Enterro a língua no chão.
Mas os pássaros cortam os ventos
com  seus voos apressando o inverno
e as sombras que me refrescam a boca.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

22.1.18

O que é um nome?

Monserrat Gudiol 



Grito contra grito.
O combate a estremecer o chão
na vertigem do ódio.
O gesto e o suor a oxidarem o gume
dos dentes, das unhas, dos martelos.
Em delírio, em êxtase quase,
não cediam ao amor, cediam à morte
por terem no sangue um veneno tribal
e a danação dos despojos.
Entre eles, ela e ele, assombrados de paixão.

Chama-me só amor, ele lhe pediu,
vergastando o próprio nome.

Graça Pires
In: A CNB e os Poetas, 2016, p. 36

Maio de 2016, depois de ter assistido ao bailado "Romeu e Julieta", coreografado por Rui Horta, a convite da Direcção da CNB, através de João Costa

15.1.18

Em seara alheia


Somos sozinhos com tudo o que amamos
Novalis

Voltarei a cada página para colher
os indícios das tuas mãos
porque a palavra tempo se repete
e o silêncio continua nas minhas mãos

Gisela Gracias Ramos Rosa
In: O livro das mãos. Lisboa: Coisas de Ler, 2017, p. 63

8.1.18

A ruiva

Amedeo Modigliani

Soltaram-se os pássaros vermelhos,
colados em meus cabelos.
Roçaram a sombra dos navios
e voaram, em círculos fechados,
rasando os areais.

Como um esboço de naufrágio
no rosto dos homens
que afagam sempre os filhos
como se fosse a última vez.
Como se, no coração das areias, os ventos
se enrolassem nas dunas em rituais de paixão.

Regressaram, depois, os pássaros vermelhos.
E, lentamente, desalinharam meus silêncios.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017


2.1.18

A respiração com que celebro cada instante

Albino Moura


Em silenciosa queda, o rasgo que vaza
secura e sangue abre-se à rendição
do gesto elevando as mãos.
No recinto dos cânticos mais discretos,
talvez haja um eco de salmos entoados
por nítidos anjos a devolver-me,
como herança inscrita em tábuas sagradas,
a respiração com que celebro cada instante.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015