25.3.24

Perplexidade

Vladimir Kush


Nenhuma simbologia pode explicar
o halo da chama antes da cinza.

A luz queimada na estranheza
de tudo o que perece.

O infinito perene do instante
que se dissolve no colapso do tempo
e no mais evidente alvoroço da vida.


Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 49

Desejo a todas e a todos uma Páscoa tranquila e cheia de amor.


18.3.24

O imenso silêncio dentro de mim

A convite da Amiga Rosélia

                                                            

Procuro o lugar onde começa o silêncio. 
O silêncio transparente do mar, 
dos barcos ao longe, da sombra dos mastros, 
do brilho dos búzios. 
O silêncio das sementes, 
da melancolia das árvores, 
do restolho do trigo, do afago da terra. 

O imenso silêncio dentro de mim,
na ansiedade das palavras distantes,
quando, sem aviso, ele se afunda
no meu peito insensatamente,
como se fora um vício antigo
transfigurando as sílabas.
Como se uma inesperada sedução
cristalizasse os poemas que escrevo
de dentes cerrados, cativando a voz.
Como se a linguagem se evadisse
na incompletude dos sonhos.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021

11.3.24

Em seara alheia

 


Oração em pleno voo

Sem sequer pensar
Eu ascendo os degraus
E lanço-me aos céus
E no meu voo nem seguro os cabelos
Que se soltam ligeiros
Como flâmulas
Entre a amenidade das flores
E o aroma dos frutos outonais

Ao subir
A paz e a esperança invadem-me
E deparo com campos de trigais
E cores multicores
No devaneio impensado
Solta-se da boca um beijo
Rasgando os céus

Sei que na minha oração
Uma luz celestial
Tão cândida e serena como
O meu rosto
Se projectará
Nos confins do universo

Amanhã não sei dos voos
Porque só o hoje prevalece

©Piedade Araújo Sol
In:
Olhares em tons de maresia, 2013-11-05

4.3.24

Rumo ao sul

Aglayan Agac

                                                                                                            
                                                                                                        Para a Lília Tavares

Fascinada por árvores antigas 
escreveste um livro 
e fizeste de cada folha uma jangada. 

Num desvio da noite 
quando a brisa 
agitava devagar as glicínias 
fugiste rumo ao sul 
com a escuridão a perseguir-te. 
Um sopro salgado dava a todo o percurso 
um abraço marinho. 

Gritaste todos os termos náuticos. 
A força dos braços ganhou 
a firmeza das tábuas. 
Atravessaste as vagas com a fúria 
dos que enconcham as mãos 
para refúgio da pérola perfeita. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 31