27.11.23

Em seara alheia



Onde nasce o silêncio 

Quando se abriga na memória dos barcos, 
na superfície inquieta do mar 
e sobrevive na plenitude dos mastros. 

Quando se aprende a não perder o rumo 
no momento em que rema, 
assim que as aves fugazes 
sopram segredos da noite dolorida. 
Aí mora o silêncio. 

Quem está distante da infância se guia pelas marés, 
ouve de longe o timbre de sua voz nas águas, 
clamando o próprio nome 
nas viagens incertas dos marinheiros. 

Na solidão da paisagem, 
quando há algum naufrágio, 
sempre volta a novembro, 
onde vê a criança que foi. 

Solange Firmino, 22 Nov. 2023 

Este poema foi-me oferecido pela minha Amiga do Brasil, Solange Firmino, no dia do meu aniversário. Muito obrigada, Solange

20.11.23

Um dia de novembro

Ana Pires Livramento


Uma premonição envolve em mistério
a manhã de nevoeiro de um dia de novembro
e desperta na lembrança os caminhos da inocência.
Em passo lento, em via-sacra,
assisto calada à passagem de mim.
O princípio e o fim dos caminhos
desvendam, no código dos ventos,
em rigoroso segredo, o meu perfil,
a moldar as vertentes que me são voragem
e ofício no interior dos dias.
Pretendo um idioma insensato
para me definir ou pronunciar o meu nome.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 63

13.11.23

Bebo a própria sede

Michael Bilotta


Volto às palavras resguardadas no útero dos sonhos. 
Uma caligrafia exasperada quer ofuscar o brilho 
em meus olhos, exaustos de procurar 
a estrela d’alva no infinito do amanhecer. 
Dobro-me sobre as páginas em que me escrevo. 
Como se fora uma serpente, rastejo as letras 
com sílabas átonas para não desfocar a minha voz, 
quase ilícita, quando me refugio na paisagem 
para habitar as múltiplas geografias das sedes eternas. 
Bebo a tragos longos a própria sede e choro a tristeza 
extenuada de qualquer melancolia distante. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 55

6.11.23

Nenhuma palavra

Moisés Saman


Nenhuma palavra destrói um grito mudo 
um silenciamento em desamparo 
um muro farpado com arame 
uma chocante perfídia humana. 

Tentamos decifrar gestos confusos 
na turbulência de mãos intermináveis 
que enfrentam tormentas 
com o olhar cheio de cegueira 
à procura de um deus no suor da morte. 

Nenhuma palavra circunscreve o medo 
de olhares indefesos a pairar 
sobre uma paisagem impessoal. 
Nenhuma palavra redime as sombras 
dispersas no sangue de quem conhece 
o chicote da frieza e busca um ponto 
de fuga para agarrar a vida. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023. p.59