29.8.08

Neles me reconheço

Menez

Quando identifico os passos
dos que vagueiam sem endereço
e neles me reconheço
entendo por que há aves que cegam
com a transparência do orvalho.

De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

26.8.08

Em seara alheia


Precisava de falar-te ao ouvido
De manter sobre a rodilha do silêncio
A escrita.
Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.
Da indigência.E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra
E da tua casa.
E do teu chão.

Daniel Faria
In: Poesia. Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2003

22.8.08

Ariadne


Ariadne nada sabia da morte.
Quis ter a eterna idade das águas.
Naxos foi o exílio
onde levou aos olhos a curva do luto.
Sobre as rochas desabou a noite,
impregnada de paixões.
E o silêncio a chamou de muito longe.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

18.8.08

Poema de amor

Manuel Fazenda Lourenço

Enquanto os meus passos procuram
nos teus a ressonância da alegria
e ambos reconhecemos a luz fascinada
do olhar, dá-me a tua mão.
O nosso caminho não é a tristeza,
nem a raiva, nem o medo.
O rio conhece-nos a voz
porque transportamos no coração
pássaros em chamas e vagueamos lado
a lado, sem tempo, sem idade.
Um desvio de malícia denuncia
a suspeita cumplicidade da brisa
que nos brinca no rosto.
Uma densa névoa lambe,
tumultuada, a pele da noite,
Ao amanhecer, quase inesperadamente,
far-se-à verão em nossas bocas.
O teu nome e o meu nome serão frutos
de esperma e saliva presos à língua.
Os teus olhos : inquietos,
deslumbrados, transparentes.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

14.8.08

Na data prevista

Maurício Abreu

Na data prevista, agosto arde
e nem sequer uma sombra indaga
a desolação da terra nos montados.
Os pássaros trancam o verão em suas asas,
acenando à luz coalhada das nascentes.
Um sorriso, ajustado ao abandono,
envelhece nos olhos das crianças.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

11.8.08

Memórias de Dulcineia V

Alvarez Bravo


Ponho nestas memórias
a íntima clandestinidade
dos amantes.
Hei-de dizer o nome
de quantas aves se perderam
por roçarem o vazio da noite
em vagaroso voo.
Hei-de ocultar a cara
próximo de uma fonte,
para colar a boca
ao trilho das chuvas.
Hei-de cercar com águas
nocturnas o lume dos seios.
Depois, sei que vou estremecer de aflição,
quando o ranger das portas se confundir
com o chamamento da tristeza.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

7.8.08

Se viesse do mar

Maicar Förlag
Se viesse do mar o silêncio
transparente desta mágoa,
eu podia desenhar
um barco para fugir,
ou esperar que a maré
levasse a água
que outras sedes me trouxeram.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

4.8.08

Em seara alheia


Franz von Suppe:
Poeta e Camponês

A jovem camponesa que faz versos.
Não os passa ao papel porque não sabe escrever,
mas diz que os preserva em cada árvore que vê,
e na chuva que cai,
e no sol que se põe.
Uma pequena erva pode ser um poema,
ou a água que corre no leito de um ribeiro
onde uma luz se esconde ou uma sombra vibra.

Como cuidar da imperfeição
senão sofrendo pelo que é perfeito?

Às vezes – diz ela -, passa-me pela cabeça
uma onda de música que não tem lugar
e eu sei pertencer a um mistério sem nome
que dói no coração muito devagar.

Amadeu Baptista
In: O bosque cintilante, Maia: Cosmorama, 2008