29.4.15

Bailarinos: o gesto e a leveza


Monica Stewart

Não usam máscara.
Têm a cara marcada pelo fogo-preso
do corpo prestes a incendiar o chão
onde rastejam, se desmoronam e se rasgam
até ao abraço mais feroz de quem os cerca.
Não usam sapatilhas.
Têm, nos pés descalços, o ritmo
inocente e perverso dos movimentos
que a dança lhes consente
e os torna possessos de volúpia.
Não usam cenário.
Têm a envolver-lhes a cintura, o reflexo
das sombras que os desliga do palco
com a intimidade de um impulso,
mesmo quando fincam as unhas
na madeira à procura de equilíbrio.
Querem a música. Sim, a música.
Uma sonoridade que lhes perturba o gesto e a leveza.
Que os desnuda.
Que arrasta o rio que lhes rebenta no olhar.


Graça Pires
In: CNB e os poetas, 2014, p. 3

Poema feito na sequência de ter assistido ao bailado "Orpheu e Eurídice", a convite da direcção da CNB, através de João Costa. Bem hajam pelo convite.

23.4.15

Desenho uma flor




Desenho uma flor.
Toco-a ao de leve.
Uma espécie de afago rubro
habita minhas mãos
que guardam, na bainha das palavras,
a voz do espanto
trauteada por insuspeitos lábios.
Escrevo devagar para não ferir
a vertigem da madrugada
que se rasgou em todos os olhares.
Toco a flor, levemente.
Há, de novo, no ar um aroma inesquecível.

Graça Pires
In: Abril: 40 anos. APE, 2014, p. 249

18.4.15

Em seara alheia



Tão pouco foi o que mudou.

A porta ainda a mesma, com seu chiar nos gonzos, seu gemer de cansaços.

O céu semeia oiro ou água ou vento, a entontecer donzelas, a agoniar os velhos.

Bem vês, pequena é a mudança.

A farinha ainda é pão e o pão é corpo e o corpo é alimento da vontade.

Os sonhos continuam, mais imprecisos, mais voláteis, e as vigílias mais longas, a segurar a terra na encosta.

Se queres saber do sobressalto dos pardais, posso dizer-te que já não bato palmas, que aprendi o sossego das ramadas.

Solto os braços, embrulho-me na tarde, abro o livro.

Um novo conto há-de começar.

Licínia Quitério
In: O livro dos cansaços: textos poéticos. Ed. da autora, 2015, p. 22

11.4.15

Até que haja chuva nos meus olhos

Pedro Domingues


Quando se dissipam as neblinas
da manhã, o mar cabe inteiro
nos meus gestos sequiosos,
mortificando-me os lábios
carregados de estiagem.
Ao fim da tarde escreverei
no diário de bordo: um dia
hei-de beber de um trago a água
de uma fonte até que haja chuva
nos meus olhos.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

4.4.15

Em seara alheia



Entre ervas

Era pequena como um grão de café.
Habitava entre as ervas,
Brincando com os bichos rasteiros,
Diluindo-se, reunindo-se de novo,
Inteira uma e outra vez.

Numa certa manhã, a lagarta disse:
- Deves regressar a casa
E quebrar a tristeza da tua mãe.
Quando esta a viu, chorou de alegria.
Há muito que havia perdido aquele rebento,
Uma gota entre tantas.

A filha da Chuva, gota de água morna,
Voltara transformada em orvalho.

Nesse dia houve aguaceiros
E o céu, em festa, encheu-se de cor.

Vera Vilhena
In: Fora do Mundo. Macedo de Cavaleiros: Poética, 2014, p. 172