30.3.09

Em seara alheia


O passado dói como a dureza do mundo
João Rui de Sousa
Tenho saudades da tua voz,
desse rendilhado de sílabas
a desaguar lento no alvoroço
da tarde. Tenho saudades
da tua boca, onde eu, - náufrago
de antigas visões - todas
as noites ouvia a límpida melopeia
da ilha. Tenho saudades
das tuas mãos, sem convicções
fundeadas nas mais luminosas
águas. Tenho saudades
do ritual dos peixes, do rumor
inconsolado da brisa a soar
mansa no abandono dos búzios,
do emaranhado das algas
a envolver-nos a prontidão
dos passos. Tenho saudades
de mim nesses tempos,
quando não tinha saudades.

Victor Oliveira Mateus
aqui
In: A irresistível voz de Ionatos. Fafe: Labirinto, 2009

23.3.09

Houve noites

Alvarez Bravo

Houve noites em que sonhei
que o sol incendiava as pedras
que eu pisava.
Ou eram os meus pés
que ateavam o fogo?
À espera que as lembranças
me tranquilizem
cubro, com o véu do tempo,
o meu verdadeiro rosto.
Desfaço a bainha
dos panos que me vestem
com a farpa desta sede lenta
que se oculta na terra
sem retorno.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

16.3.09

No ângulo da escrita

Magritte


Contadas pelos dedos, as sílabas
parecem irrelevantes no poema.
Não fora a insuspeitada orgia

com que as letras se misturam
e o sentimento seria, somente, um polissílabo
mudo, imóvel, nado e morto no mesmo som.
Encosto as mãos à grafia de um verso
e enceno, ao redor dele, um calado aviso.
Sem rumo, ouço o meu vulto crescer
em direcção a um sobressalto masculino ou solar.
Um cheiro de relva aparada impõe um círculo
de recordações no ângulo da escrita.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

8.3.09

Mulheres

Gérard Castello Lopes

Ao som de canções de amiga,
revêem a geografia dos sonhos
na madeixa verde, que escorre
pelos seus cabelos, quando,
nem tudo é de pedra,
no exílio dos olhos.
Às vezes tudo o que têm,
está na memória
de um impossível discurso,
ou na visão alienada das paredes,
reflectindo pensamentos e esperanças.
São o culto onde o desespero
se desdobra em asas,
metamorfose de anjos negros,
criando clareiras nocturnas
para que a luz lhes devolva

o regozijo íntimo da vida.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

2.3.09

Em seara alheia


Na esquina da tarde pintei
a barraca da feira dos teus olhos,

depois ali fiquei, feliz,
no gosto da obra consumada…

Ah, pudesse eu prender-te a limpidez que trazes
em delicados fios de ráfia e prata fina!
Pudesse eu lustrar-te o corpo e ferir o ar
com entusiásticos odores de limonete e rosas bravas!
Pudesse eu tecer-te essa terrível solidão
com êxtases e horizontes que só para ti inventaria!

Pudesse em tudo ousar para que fosses
arco dos teus olhos
que encostado a fontes múltiplas
ansiasse que eu pudesse.

Victor Oliveira Mateus
aqui
In: Nas águas a luz suspensa. Lisboa: Minerva, 1998