28.7.09

Em seara alheia



a primeira vez que tive vinte anos
esperavas por mim naquele café com nome
de porto grego que faz a Grécia
no meio do bairro alto dizias muitas vezes
mexendo o café que sempre bebias sem açúcar


depois descemos até ao rio e prometeste
um barco por cada dia em que
os meus vinte anos voltassem
às tuas mãos naquele lugar


nessa altura envelheci muito depressa
ao ritmo das cartas em que prometia odiar quem

junto de mim dissesse
-como era moda-
que os vinte anos tinham sido o melhor tempo
das nossas vidas


e o meu coração era então tão grande
que todos os que passavam

se serviam dele

Alice Vieira
In: O que dói às aves. Lisboa: Caminho, 2009

21.7.09

Um estranho signo

Carlos Gutierrez

Pelo lado mais intranquilo da luz,
há vozes alheias
que me inquietam as mãos.
Um estranho signo
risca-me no ventre
a feminina morte
de todas as infâncias
em que, sílaba a sílaba,
me procurei na mais espessa
das noites, sem medo de emergir
de qualquer sombra.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

14.7.09

Não sei por que motivo

Walker Evans

Às vezes
não sei por que motivo
afogo o olhar
em trágicos silêncios.
Para encontrar a luz
me bastava enfrentar
a noite, porque possuo
nos olhos o apelo
errante das sombras.
Pequenas traições
tatuadas na pele
são apenas pretextos
para disfarçar os medos.
Um remorso
germinando na lembrança
devolve-me o temor
de múltiplas solidões.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

3.7.09

A mais clara palavra

Manuel Fazenda Lourenço


A mais clara palavra lança a sua sombra
sobre os muros caiados de fresco.
O reflexo da cal incide em nossos olhos:
o mesmo aceno da luz, o mesmo brilho,
o mesmo pressentimento de júbilo.
Sobre o peito fatigado da terra
refazemos a casa.
Dói-nos, no olhar, a intensa floração
das árvores e podemos sentir,
no clamor das antigas oliveiras,
o vento que nos trouxe.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005