30.8.21

Memórias de Isadora XII


No cetim do meu corpo
atraquei as barcas do regresso 
para me não doer 
qualquer ausência, qualquer exílio. 

Nele guardei o novelo 
luminoso dos sentidos, 
à flor de cada gesto 
e me arrostei de melodias 
e de cor, com fios invisíveis 
ajeitados ao legado 
da época que me coube. 

Manipulei o espaço para dialogar 
com a música a impiedade 
da guerra e do caos. 
Para diluir o absurdo inscrito 
nos olhares de toda a gente. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 48

23.8.21

Dual

Amanda Cass


Ao longo da vida houve coisas 
que nunca te contei. 
Não por acanhamento. 
Não por vergonha. 
Mas por saber que, no teu íntimo, 
as conhecias bem. 
Na dualidade que somos 
não há segredo meu que tu não guardes. 
Até aqueles que escondi de mim mesma, 
também os escondias de ti. 
Nunca esqueceste, eu sei, 
as múltiplas travessias da memória 
em todas as idades, tão iguais 
em inocências e remorsos. 
Lembras aquele dia em que enchi 
as minhas mãos de terra 
e dentro das tuas mãos brotaram 
amores-perfeitos 
que as minhas mãos colheram? 

Graça Pires 
In: Sou tu quando sou eu. homenagem à Amizade: antologia de poemas inéditos. Organização e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Braga: Poética, 2021, p.22

16.8.21

Conhecia todos os rios navegáveis

Dorothea Lange 

Conhecia todos os rios navegáveis 
e a puríssima luz do silêncio 
na solidão das montanhas. 
Detinha no rosto cidades interiores 
com casas à beira da estrada. 
Cumulava nas medas de palha 
a espuma de incontrolados desejos. 
Da sombra de cada árvore 
fazia a sua mesa, a sua cama, a sua morada. 
Todos lhe ignoravam o nome. 
À sua passagem fugiam as crianças, 
ladravam os cães, agitavam-se as mulheres, 
escondiam-se os homens. 
Um suspeito luzimento lhe invadia o olhar 
como se a teimosia dos sonhos o acossasse. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 57