25.4.20

As minhas mãos se dão



Aqui, onde o coração reclama uma pátria melhor,
volto ao lugar das palavras que nunca calei,
por saber que o silêncio se articula na errância
da voz e que nele cabe a solidária multidão
que ama, por inteiro, a liberdade.
A boca sabe-me, inesperadamente, a sangue,
em nome daqueles que desistiram do sonho,
sem remorsos, à margem da esperança.
Tardei a encontrar o exótico perfume,
com que alucinei os dias e as noites,
onde, de um trago só, bebi a própria sede,
guardada no barro da memória.
Agora, sou dos que medem o desassossego
dos lábios, pelo silente sobrevoar dos pássaros,
rente à coragem ou às lágrimas.
As minhas mãos se dão, com a inquieta força
de quem vive ancorado ao fascínio de ter no olhar
um horizonte tão livre, tão límpido,
como a luz transfigurada das manhãs.

Graça Pires

20.4.20

Em seara alheia





Já isolei o coração. Lavei os olhos

com sal até sangrar toda a doçura.

Coloquei as mãos numa gaveta de silêncio.

As lágrimas estão em confinamento desde

o primeiro dia. Adiei o medo para quando

necessário.  Adiei tudo o resto, na verdade.

Vestidos novos, beijos, viagens e poemas.

Adiei até os filhos. O amor pelo amor.

Entretanto, nas legendas de um filme

leio que a esperança é uma coisa

perigosa. E no entanto, digo,

no entanto há concertos nas varandas

e gestos novos nascidos como planetas

antes desconhecidos. E no entanto

há rosas desenhadas nos nossos rostos.

Feridos, os nossos rostos, ardendo de dor.

E no entanto, é o abraço das cicatrizes

Que nos salva.



Virgínia do Carmo, 2020

Lido pela autora no sarau poético, no dia 7 de Abril, dia Mundial da Saúde, em homenagem a todos os profissionais de saúde que, com enorme sacrifício estão na linha da frente deste combate que a todos assombra.


13.4.20

Do meu país vos digo


Do meu país vos digo:
Dos aromas de urze e alfazema.
Dos caminhos de rosmaninho e alecrim.
Dos matizes, no verão,
rasando a terra sem sombra
e demandando os rituais
das uvas pisadas no lagar,
ou em bocas abertas à dádiva da colheita.
Do intenso tom de júbilo
que retorna em cada primavera
com a insondável melodia
dos jacarandás rondando as ruas
pela cercadura sombria dos arbustos.

Graça Pires
De A incidência da luz, p. 47

6.4.20

Um requiem pelos sonhos

©Shutterstock

Refazemos o tempo nocturno no mais escondido olhar
para que ninguém veja os passos em falso
com que trilhamos o destino.
Olhamos o carvão apagado, como se fosse possível
encontrar a noite debaixo da trempe
onde, no tempo antigo, se poisavam as panelas
e se procurava a promessa de um lugar à mesa.

Contra o silêncio lemos a meia voz: ponham laços
de crepe nos pescoços das pombas da cidade.
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas
de algodão. Voltamos a ler e as palavras de Auden
ecoam como um requiem pelos sonhos
profanados em mãos funestas.
Depois não sabemos como evitar o luto,
ou a culpa, ou a solidão.

Graça Pires
De A incidência da Luz, p. 13