29.3.21

Em seara alheia

 


6.

Garimpar a luz 
de certas palavras mortiças 
até ao doce sabor dos frutos de outono. 
Cuidar dos laços que desataste 
na minha tristeza, 
dos que ataste na minha alegria. 
Cantar. 

Num alfabeto tão leve, tão breve, 
como se nele pousassem apenas borboletas. 
Um alfabeto que viesse acordar os homens 
para o Sol que espera há séculos 
a hora de nascer para todos.

Lídia Borges
In: Que farei com este azul que me beija. Braga: Poética, 2021, p. 18

21.3.21

As palavras andam por aí

Sarah Affonso 

As palavras penetram o espaço e o tempo. 
Amadurecem em papel de seda, 
manipulando a cor, ateando o silêncio, 
incendiando as cinzas, anunciando a luz. 
As palavras andam por aí 
como se fosse a vez primeira: 
solitariamente manejando a noite. 
E desnudam-me. 
Dançam no meu corpo. 
Cobrem-no de malícia. 
Tatuam em minha testa o tom 
das tangerinas para que o seu sumo 
me escorra pela cara até à boca. 

Graça Pires 
De A incidência da luz, 2011, p. 71 (reeditado)

Se quiserem ouvir o poema podem fazê-lo aqui:

https://youtu.be/ynVX8qL11N0

15.3.21

Encontrou-o à entrada do deserto



Encontrou-o à entrada do deserto, 
absorto, como se conhecesse 
todas as invocações do silêncio. 
Lia-se nos olhos dele a atracção pelo vento, 
pelas areias, pelo espaço imenso, pela solidão. 
Ela saía do deserto. O mesmo deserto. 
Trazia um cacto murcho em cada mão 
e um rio seco a escamar-lhe a pele. 
Olharam-se. E ela contou-lhe. 
Contou-lhe das vezes que se afogou 
no chão pensando que era água; 
como rebentaram seus lábios 
pela sede interminável. 
Disse-lhe que quase morreu 
com saudades do mar; 
que bebeu o próprio sangue 
para curar a febre e o delírio. 
Falou-lhe do medo e do cansaço 
que venceu cambaleando, rastejando, 
dormindo agarrada à noite. 
Ele hesitou. 
Depois, com uma quietude 
que só nos prodígios acontece, 
pegou-lhe na mão e foi com ela até ao mar. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 61

8.3.21

Secaram as roseiras bravas

Federica Erra


Secaram as roseiras bravas 
cultivadas no atalho da paisagem. 
Uma mulher canta roucamente 
e o seu canto é um brado 
em desavença com a mudez 
enraizada na garganta. 
Vagarosamente, enrodilha na anca 
as vestes de pano cerzido 
e afaga seu corpo com as mãos ásperas
como as roseiras bravas.
Tão precário, o perfume das rosas! 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 48

1.3.21

Se os despojos da noite

Hengki koentjoro 

Se os despojos da noite 
se insinuavam na gruta do olhar 
como uma advertência, 
com suas mãos se rasgava 
debruando o friso dos ombros 
com o gemido das ondas. 
Aos poucos, apresava a voz ao silêncio 
para escutar o vento a prender-lhe a sombra 
à sombra dos barcos. 
Havia quilhas em círculo no ventre da espuma 
e excesso de lodo à sua volta. 
Ninguém dava conta da névoa 
que entorpecia o grito e estrangulava os pulsos. 
Só a sua sombra, amarrada à sombra dos barcos, 
urdia outra névoa para proteger as quilhas.

Graça Pires
De A solidão é como o vento, 2020, p. 44