ESTENDO OS PULSOS
à lâmina da memória: cada gota que escorre é uma tempestade por
dentro, um copo de veneno sobre um piano esquecido, um mapa
truncado
de uma cidade perdida. Ardem sombras de rosas no desalinho do
tempo e um resto de cinza costura o teu retrato. O sangue da memória
não é a casa das coisas
é uma luz de estrela
por entre a poeira dos astros, um clarão de chamas no interior
calcinado dos livros. Abro as portas da manhã
que as noites há muito fecharam. Cega-nos esta vã glória de estar
morto e caminhar ainda, de ainda respirar, de amar sabe-se lá o quê,
cega-nos este desengano de sonhar ao relento
um lugar que não existe.
Nunca aprendemos a morrer de uma vez só. O sangue procura o
sangue mesmo quando se derrama sobre a aridez do chão. E a terra
que nos consome não nos subtrai ao vício de lançar sementes sobre as
pedras
das falésias.
O dia escurece a vaga moldura das coisas, as palavras escapam-se
pelas fendas a reclamar o silêncio. Resta um sussurro a nomear
animais extintos e uma luz inútil invisível que persiste
na ponta dos dedos.
Rui Miguel Fragas
In: O Rumor das Máquinas. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2015, p. 36