29.8.16

O rio intocado de outros sonhos

Duarte Belo

Com os lábios ornados de cristal
quebro as razões mais sombrias
no dorso das contradições.
Não me reconheço em jogos encenados.
Disperso as nuvens carregadas
de abismo em duelo com a luz.
Projecto-me num diálogo
que rasga uma outra voz em espanto.
E detenho, em mãos cegas, a sorte e o revés
da biografia que me identifica.
Sei que por dentro da dobra do passado
corre o rio intocado de outros sonhos.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015 

22.8.16

Todas as gaivotas me perseguem

Saul Landell

Sem embaraço vou arrancar, com as unhas,
os pregos do barco que inventei.
Quero afundar-me e medir o fôlego
em que me salvo.
Enconcho as mãos para transpor a maré
e o litoral devassado pelo lodo.
Enrolo os pulsos em redes de pesca
e todas as gaivotas me perseguem.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

15.8.16

Ungido com palavras antigas

Anselm Kiefer

Ungido com palavras antigas ele atravessou
uma brenha de arbustos em chamas e disse:
Um dia as águas hão-de calar-se na gruta maternal.
Os animais selvagens morrerão nas mais íngremes
colinas onde a inundação nos olhos das mulheres
ensandecidas os levará à procura das nascentes.
Os homens caminharão na berma das estradas
carregando os filhos: órfãos, já, do seu próprio destino.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

8.8.16

Vem, cadência da música!

Monica Stewart

Traço na areia uma linha em movimento
de onda e rodo sobre mim mesma
quando as marés me bailam nas ancas.
Esta dança é em mim errática sedução.
O interlúdio da seda perfumada
em que me envolvo.
O jogo sensual no chão do peito,
como grito erguido sobre a língua.
Vem, cadência da música!
Suspende o silêncio que escorre
em pausas onduladas como água.
Encena-me em rituais profanos.
Acrescenta-me à partitura
ou ao gesto ensaiado e cerzido
nas rugas do meu corpo.
Vem e desliza inteira no êxtase da luz!

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

1.8.16

Em seara alheia


ESTENDO OS PULSOS

à lâmina da memória: cada gota que escorre é uma tempestade por 
dentro, um copo de veneno sobre um piano esquecido, um mapa
truncado

de uma cidade perdida. Ardem sombras de rosas no desalinho do 
tempo e um resto de cinza costura o teu retrato. O sangue da memória
não é a casa das coisas

é uma luz de estrela

por entre a poeira dos astros, um clarão de chamas no interior 
calcinado dos livros. Abro as portas da manhã

que as noites há muito fecharam. Cega-nos esta vã glória de estar 
morto e caminhar ainda, de ainda respirar, de amar sabe-se lá o quê,
cega-nos este desengano de sonhar ao relento

um lugar que não existe.

Nunca aprendemos a morrer de uma vez só. O sangue procura o 
sangue mesmo quando se derrama sobre a aridez do chão. E a terra
que nos consome não nos subtrai ao vício de lançar sementes sobre as 
pedras

das falésias.

O dia escurece a vaga moldura das coisas, as palavras escapam-se 
pelas fendas a reclamar o silêncio. Resta um sussurro a nomear 
animais extintos e uma luz inútil invisível que persiste

na ponta dos dedos.

Rui Miguel Fragas
In: O Rumor das Máquinas. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2015, p. 36