31.8.20

Apareceu como uma assombração

Dorothea Lange

Apareceu como uma assombração 
quase imperceptível no meio do inverno. 
Tinha deambulado pelas cidades, anónimo, 
com um saco a tiracolo cheio de raízes e de limos, 
de milho moído, de figos secos. 
Sabia agora como eram neutros,  
em sua vida, todos os silêncios de protesto. 
Queria falar até se tornar 
impronunciável o que dizia. 
Mas as palavras eram navalhas de barro 
que lhe asfixiavam a voz. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 14

24.8.20

Caminham por dentro do próprio desalento

Gregory Crewdson

Caminham por dentro do próprio desalento
com a memória exausta de pretéritos desejos. 
Já não sabem quem são. 
Dia após dia enfrentam a rejeição 
com o áspero calamento do olhar. 
Há golpes migrantes sulcando sua pele. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p.24

17.8.20

Em seara alheia


E VAI LENTO O NAVIO, enorme como os emblemas 
De um longo tempo nos cabelos do mar, 
E assumimos assim a composta melancolia, 
Em novelos de luz tão tocada, pedal azul. 
Vai lento como aquele insólito gigante 
Pedra grande, sentado na vigilância dos dias 
E o corpo em segredo, fantasia de continuar. 
Interrogamos a comissura dessas ilhas 
De que nos falaram em distantes rigores, 
A madeira do soneto, tão lento o navio. 
Tu dizes vou e não faz o mar que aqui havia 
Acaba o mês, os dias todos na pressa do brilho 
Sei baixinho aquele verso de que gostavas 
Para temporadas de silêncio, o teu peito.

Hugo Milhanas Machado
In: Estrela Tambor. Fafe: Labirinto, 2020, p. 36

10.8.20

Foi numa tarde de maio

Albino Moura


Foi numa tarde de maio que as fontes secaram.
 
O primeiro sinal foi dado pelas pombas 
que voavam espavoridas ao rés das janelas. 
Caladas, as mulheres esperaram a noite 
para se sangrarem como num parto. 
Por dentro dos sonhos dos homens 
escorregavam sequiosas serpentes 
que lhes sugavam as veias. 
Só as crianças, em perfeita nudez, 
espalharam o seu riso de água límpida 
e voaram sobre as casas como anjos.

Graça Pires
De A solidão é como o vento, 2020, p. 19


Se quiserem ouvir o poema podem fazê-lo aqui:
                       https://youtu.be/2Z20pDs1YMY