25.11.19

Escrevemos mar



Derramamento de petróleo atingiu dezenas de praias brasileiras


Escrevemos mar como se fosse a palavra
única que nos circunda a fala.
Quando éramos crianças tínhamos os barcos de papel.
E havia traineiras em que os pescadores manchados
de sal e sangue enfrentavam a tormenta de cada dia.
Agora, de quilha inquieta, os navios ferem
as entranhas da água e cingem-nos no olhar
o negro das marés e dos limos
que morrem na praia, onda após onda,
num extenuado adeus ao apelo dos corais.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2019, p. 45

18.11.19

Mulher com lenço

Amedeo Modigliani

Guardo, ao lado das jóias,
uma colecção de lenços de seda.
Diariamente, em frente do espelho,
ponho um, e outro, e outro,
até que uma subtil variação de luz
se detenha nos meus dedos,
antecipando o adorno do colo.

Mas, no tumulto inconfidente
das mãos, há outro gesto,
mais delicado, que assume
sinais de sedução,
a prever a nudeza do corpo.

E deixo que se espalhem
pela casa os segredos imperfeitos.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 17

11.11.19

O navio não voltou

Jean Dieuzaide


O navio não voltou – gritaram as mulheres.
O arpão dos gemidos sangrando suas bocas.
Foi o vento – disseram os homens
e desenharam na areia o madeiro e a vela.
Foi o escuro – falaram os meninos.
Tinham sonhado toda a noite com piratas.
E o velho sábio, antigo como as tempestades,
que sabia de cor a braveza dos marinheiros,
há muito que avisara: ninguém se salva
de um naufrágio com a bagagem às costas.(1)

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015, p. 24

(1) Séneca - Cartas a Lúcio

4.11.19

Em seara alheia


Há mulheres que falam silêncio. Enchem a vida como um 
batel de sonhos. Se lhes perguntam se querem falar do que
arrastam, respondem que é das gaivotas que preferem falar.
Trocam a terra firme pelo baloiçar das águas. Não têm
âncoras nos barcos, pois é com as mãos e a alma
que querem agarrar as amarras do cais.
Largam abrigos sem consultar as bússolas e os astrolábios
dos navegadores. Não mareiam, deslizam, Não cismam
no que não têm, antes observam as mãos abertas
e encontram-nas vestidas de sonhos.
Aconselham-se com as marés e escutam os peixes
que vêm à tona. Vestem-se para uma festa todas as noites,
mesmo que as noites não se abram ao vento,
Adormecem em almofadas de penas.
Os seus corações não precisam de leme.

Lília Tavares
In: Bailarinas de corda. Braga: Poética, 2019, p. 12