20.1.10

ATÉ SEMPRE, MÃE







Até sempre,
Mãe






Mãe

Mãe: Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.


Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
Miguel Torga
As rosas são do D'Ângelo

14.1.10

Em seara alheia


INDOLOR

Quando eu tiver
As mãos doridas
De tanto escrever
Invento uma forma
Indolor
E escrevo
Na parte de dentro
Das folhas
Onde não magoa
O poema
E onde as mãos doridas
Poderão
Descansar
Sobre a luz
Da memória.

Maria Paula Raposo
In: Marcas ou Memórias do Vento. Lisboa: Apenas Livros, 2009

7.1.10

O rumo das palavras

D'Ângelo


No fim da tarde, apenas é incerto
o rumo das palavras.
Divago entre verbos uma intriga qualquer
cruzando hipóteses sobre hipóteses,
escada de múltiplos sentidos
por onde vou e venho e volto
e me transformo num absurdo Sísifo
neste vai e vem inconsequente
que faz calar os deuses do efémero
e me arrasta o pensamento
até à criação de não sei que esperança,
de não sei que fantasmas do meu próprio sangue
onde todos os rostos são mortais
mas possuem a marca de almas
condenadas a um lendário paraíso.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997