25.9.17

Em seara alheia


Águas vivas

Estão vivas as águas do meu rio,
esta fala e este sentir intenso,
estas escarpas e estas aves
e estas farpas que abrem
asas ao tempo.
Estão vivas estas ervas
que na secura do chão
atiram poemas ao ar
e vestem a fraga nua e dura
de cor, alegria e beijos
de longo e intenso verão.
Estão vivas as palavras
que se roçam aos lábios,
plenas de sentidos, perdidas
na sede da descoberta.
Palavras que atiçam os veios
das águas a fluir no interior da terra.
Palavras que atiçam o gosto
de amoras maduras.

Teresa Almeida Subtil
In: Rio de infinitos. Produção Independente, 2017, p. 52

18.9.17

O verbo

Christine Ellger


O verbo: clareira em cama de fenos
ou ilha oculta de ocultos silêncios.
Como se o nervo do vento
fustigasse a voz dos poetas
esmagando a rigidez dos sons.
Apta a declinar as regras do jogo
retenho, nas arestas da página,
o som do lápis, como um pião
rodopiando traços inseguros.
A película de imagens no interior do texto,
levemente aberto ao segredo das mãos
deixa que me habite um desvario
que faça regressar um verso invisível.

Graça Pires
De  Uma claridade que cega, 2015 

11.9.17

Mar

Hengki koentjoro

Não fales das conchas esmagadas 
quando os teus olhos 
são como um barco 
à entrada dos meus olhos. 
No fundo das águas, os corais 
rodeiam os meus sonhos. 
Porque eu sou a mulher que ama 
ferozmente o mar e canta 
com os navegantes 
a ladainha das vagas.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

5.9.17

Antonia

Amedeo Modigliani

Em minha infância aflita
usava um inconfessado modo de rezar
as orações que me ensinaram.
Rogava para crescer depressa.

A crença em deus parecia-me converter
o desalento na delicada esperança de uma dádiva.

Agora, quem me dera não ter crescido tanto!
É tudo tão cruel neste tempo loucamente obscuro.
Preciso de palavras inteiras: ecos
na voz dos que não ignoram o sangue,
os gritos, os muros do ódio, a dor.
Preciso de palavras únicas a susterem
os sons da vida, com pétalas adejando na boca.

Quero ir com os viajantes ou com as aves
sem direcção prevista.

Quero decifrar horizontes e habitar
o desmedido quebranto do alvorecer.

Quero esgueirar-me pelo relento das grutas,
pelo lado mais escurecido das estradas e das casas.

E deixar que cada anoitecer me denuncie.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017