17.12.19

Interacção Fraterna de Natal


A convite da Rosélia Bezerra aqui deixo a minha participação nesta fraterna interacção de Natal. 

A minha Noite de Natal é um encontro da Família. 
O conforto e a alegria que isso nos proporciona enche de amor os nossos corações.

A quantos gostam de ler poesia neste meu espaço, desejo tudo de bom. E digo:


Posso escolher um salmo, ou um poema,
ou um coro de anjos para dizer Natal.
Com uma estrela a oriente do olhar em sobressalto.
Com um presépio escondido por dentro da infância.
Com a memória do silêncio agitando no coração noites antigas. 

Graça Pires, Natal de 2019



Quero palavras brancas como asas de anjos para convocar, neste Natal, a promessa de uma Luz de Paz e Amor.
Quero para todos um ano de 2020 MELHOR.

Até  para o ano. 

9.12.19

A respiração do poema

Federica  Erra


As palavras trancadas no labirinto da boca.
A respiração do poema impondo o glossário
nas veias, como uma queixa.
Os meus versos rompendo os pensamentos
que nascem na alma solitária dos homens
porque um útero de argila
moldou os sonhos, como letras,
em frente do meu nome.

Graça Pires
De Labirintos, p. 29

2.12.19

Em seara alheia



Quero dizer-vos que estou aqui
e me pergunto de onde venho,
como cheguei,
quem me pegou na mão e disse:
Vem e fala, vem e escreve.
E eu falei e eu escrevi.
Depois foi só esperar
que a voz soubesse
o recado das ondas
e as palavras fossem o trilho
onde toda a aventura é uma campina aberta
à espera da semente que a fecunde.
Não sei se sou a terra ou sou o grão,
se sou a mão ou o arado.
Sei que vou continuar na voz do vento,
no vaivém das marés,
sem perguntar se vasta é a planície,
quem me espera na outra face da Lua.
Ninguém me deu o livro das verdades,
mas eu vou.



Licínia Quitério
In: Travessia. Braga: Poética, 2019, p. 62

25.11.19

Escrevemos mar



Derramamento de petróleo atingiu dezenas de praias brasileiras


Escrevemos mar como se fosse a palavra
única que nos circunda a fala.
Quando éramos crianças tínhamos os barcos de papel.
E havia traineiras em que os pescadores manchados
de sal e sangue enfrentavam a tormenta de cada dia.
Agora, de quilha inquieta, os navios ferem
as entranhas da água e cingem-nos no olhar
o negro das marés e dos limos
que morrem na praia, onda após onda,
num extenuado adeus ao apelo dos corais.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2019, p. 45

18.11.19

Mulher com lenço

Amedeo Modigliani

Guardo, ao lado das jóias,
uma colecção de lenços de seda.
Diariamente, em frente do espelho,
ponho um, e outro, e outro,
até que uma subtil variação de luz
se detenha nos meus dedos,
antecipando o adorno do colo.

Mas, no tumulto inconfidente
das mãos, há outro gesto,
mais delicado, que assume
sinais de sedução,
a prever a nudeza do corpo.

E deixo que se espalhem
pela casa os segredos imperfeitos.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 17

11.11.19

O navio não voltou

Jean Dieuzaide


O navio não voltou – gritaram as mulheres.
O arpão dos gemidos sangrando suas bocas.
Foi o vento – disseram os homens
e desenharam na areia o madeiro e a vela.
Foi o escuro – falaram os meninos.
Tinham sonhado toda a noite com piratas.
E o velho sábio, antigo como as tempestades,
que sabia de cor a braveza dos marinheiros,
há muito que avisara: ninguém se salva
de um naufrágio com a bagagem às costas.(1)

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015, p. 24

(1) Séneca - Cartas a Lúcio

4.11.19

Em seara alheia


Há mulheres que falam silêncio. Enchem a vida como um 
batel de sonhos. Se lhes perguntam se querem falar do que
arrastam, respondem que é das gaivotas que preferem falar.
Trocam a terra firme pelo baloiçar das águas. Não têm
âncoras nos barcos, pois é com as mãos e a alma
que querem agarrar as amarras do cais.
Largam abrigos sem consultar as bússolas e os astrolábios
dos navegadores. Não mareiam, deslizam, Não cismam
no que não têm, antes observam as mãos abertas
e encontram-nas vestidas de sonhos.
Aconselham-se com as marés e escutam os peixes
que vêm à tona. Vestem-se para uma festa todas as noites,
mesmo que as noites não se abram ao vento,
Adormecem em almofadas de penas.
Os seus corações não precisam de leme.

Lília Tavares
In: Bailarinas de corda. Braga: Poética, 2019, p. 12 

28.10.19

Marie

Amedeo Modigliani


Oculto no olhar um débil tumulto.
As veredas da infância golpeiam-me
nas pálpebras a tua morte, pai.

Como aves em queda no ensaio do voo.
Como passos sublevados correndo pela noite.
Como os dias em que enrolo
no pescoço o meu cachecol mais negro,
a exprimir a dor vertida sobre o rosto.

O laço branco que uso no cabelo é um aceno
em minhas mãos tão desamparadas das tuas.

Graça Pires
De Fui quase todas as Mulheres de Modigliani, 2017, p. 39

21.10.19

Há um ritual de espera nos teus braços

Oleg Oprisco


Quando os barcos singram lentamente
e as gaivotas descansam nas dunas
vigiando o vento, há um ritual de espera
nos teus braços, ausentes de abraços.
Como se a vida te destinasse,
em cada praia, uma solidão maior.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014, p. 41

14.10.19

A sedução da fuga



Seguimos pela noite indiferentes
a todos os ruídos que rebentam
o rigor do silêncio.
Temos nos punhos a navalha afiada
do tempo rasgando diante de nós
o túnel da eternidade.
Vamos até onde nos leve a sedução da fuga.
Queremos avistar o destino das aves
que trazem a luz das auroras riscada em suas penas.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p 54

7.10.19

Em seara alheia



Sou Valquíria

Sou valquíria de cavalo à solta
Sem rédeas 
Sem esporas
Pégaso, meu cavalo, sobrevoou comigo todos os rincões
da floresta, seguindo teu rasto.
A atmosfera, grávida de ti, chamava-me.
De lança, sedenta de amor, incitava Pégaso a voar como um louco.
E à medida que nos aproximávamos dos teus sinais,
mais me distanciava de ti.
Por onde te escondes, doce guerreiro,
que foges das lanças do amor?
Um dia Pégaso descobrir-te-á e, nesse dia, vencerei a batalha.

Carmo Baião
In: Dançam corpos em almas inquietas. Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2019, p. 9

30.9.19

A amazona

Amedeo Modigliani


Gosto de vermelho.
É a cor do fogo e do sangue.
É uma cor vistosa e coquete.
Como eu.
Como as rosas que mandei
plantar no meu jardim.
Como a minha jaqueta de montar.

Não acham singular
este equívoco de eu estar
retratada de amarelo?

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 29

23.9.19

As primeiras chuvas de setembro


Katia Chausheva

Antes da queda, o pássaro ferido deteve-se
na árvore mais frondosa para cingir a haste
quebrada em suas pupilas ausentes do brilho.
Tinha voado para além das nuvens
quando os braços do vento tornaram interdita
a distância azul que perseguia.
Ao cair da noite demandou o abismo
para ajustar o voo à viagem já vencida.
E com asas de orvalho urdiu
as primeiras chuvas de setembro.

Graça Pires
In: Soltícios e Equinócios: antologia. Coordenação de Emanuel Lomelino. Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2016, p. 63

16.9.19

Em seara alheia


Questão

Será o verbo amar uma conjugação calibrada, ou um
mero exercício de hipnose?

Questionava o sonhador, ao apócrifo desenhador de
calçadas propagandistas e ébrias de incertezas.

A resposta esgrimiu vários cenários. Tantos, que o
verbo amar escondeu-se numa falésia,
e apenas exercitou a contagem das ondas num
esboço de marés infalíveis.

José Luís Outono
In: Mares encrespados. Poética, 2019, p. 14

9.9.19

Gargalhada


Georges Dussaud



Plenos de astúcia promulgamos, 
com a sonoridade do vento norte, 
a normalidade de rir ruidosamente 
e com o excesso de quem é capaz 
de troçar da própria cara.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013, p. 15

2.9.19

Sempre soubemos

Igor Levashov


Quase acreditámos na luz rodopiando as sombras
para tornar transparente a maciez do húmus
preso à torrente das chuvas.
Pressentíamos que qualquer coisa de comovente
se alojava no brilho da folhagem atravessada
pelo perfil das aves migratórias.
Sempre soubemos que há rosas
que se desfolham antes de alguém as ver
derramando um leve aroma sobre o delírio da cor
para deslumbramento das borboletas.
Nunca se repete, sempre o soubemos,
a curva do tempo na concha ansiosa do olhar.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 48

26.8.19

Em seara alheia


Nos mastros

Nos mastros do sol, evadi-me das marés
e dancei em labirintos de luz.
Tu eras o brilho faminto, cobrindo de
assombro meus sonhos vadios.

Atravessei tuas mãos no sobressalto dos dedos
e desenhei sombras na melopeia da noite.
Perdi-me no tempo insone
e deixei-te no espaço, versos dos nosso laços.

Pernoita agora nas flores das asas das andorinhas
carrega o meu sorriso nos teus braços.
Eu
farei de tuas mãos o meu abrigo
no sangue que arde em júbilo contigo.

Manuela Barroso
In: Luminescências. Seda Publicações, 2019, p.80

19.8.19

O rumor de tantas águas

Francesca Woodman


Inclino-me levemente sobre a nudeza
devassada pelos anos.
Um rio suspende a corrente em meus lábios
rodeados pelo rumor de tantas águas.
Quero que a linguagem simbolize
um templo de absolvição e reza
nas palavras em fuga pelos olhos.
Deponho sobre o altar o naufrágio
que começa em muitas bocas.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015, p.31

12.8.19

Não falo da importância do brilho

Duane Michals

Nem sempre as janelas oferecem às casas
todas as possibilidades da luz.
Não falo da importância do brilho coado
nas traves, ou do vento espreitando as frestas.
Refiro a transparência consentida às aves
na pressa das cidades onde o voo se faz fuga.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 42

5.8.19

Em seara alheia



Incendeias as ruas

Incendeias as ruas e os passos dos homens
E todos os cios. E as mulheres nas soleiras
Murmuram esconjuros
À tua passagem.

Altiva a ti pertences. Tua alma
Apenas os poetas a cativam. Breve em cada estrofe.
Para esvoaçante partires: sina tua de amar
Em cada amor que em teu peito nasce.

Corpo mil vezes profanado. E outras tantas
Deserto. Cada palavra tua é bálsamo
Nunca azedume. Ou acinte.

Guardo de ti o gesto nobre de quem tudo entende
E nada espera. Singela em cada letra
Que em ti arde.

Amizade límpida perfuma-te as manhãs claras
E as noites inquietas - fome de vida e febre -
Que te consomem. Pulsão livre de poema
Que de teu corpo se desprende.

Manuel Veiga
In: Perfil dos dias. Modocromia, 2019, p. 78

29.7.19

Menina com fato castanho

Amedeo Modigliani


Com um impulso irreprimível 
forjei, a martelo, a quilha 
que range em meus braços 
com som de nortada 
e vesti uma túnica cor de fogo 
para que me confundissem 
com o poente.

A partir desse momento,
todos os barcos ancoraram,
tumultuados, na linha do horizonte.
Os marinheiros, com a boca
atravessada por gritos,
enroscaram-se uns nos outros.

Eu, sentada nas dunas morria,
lentamente, afogada pela sede.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 16

22.7.19

Na estiagem




Tão íntimo das nascentes, o verde das veredas
desfaz-se em cinza quando as serranias
ondulam o lume sobre o chão.
Na estiagem há-de ouvir-se o murmúrio
agonizante dos rios já perdidos do mar.
E quando o inverno chegar, os caudais galgarão
as margens se o excesso de cimento consentir às águas
que firam as casas e a estreiteza dos caminhos.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 39

15.7.19

Em seara alheia


Encosta a escada à palavra homem
e entra nela pela noite dos fundos
entra nela pela mão muda de deus
pelo lugar indizível que sustém todos os dedos
pelo dedo indicador que sustém toda a palavra
e a inicia
e a inicia como tua mulher.

Encosta a escada à palavra homem
e espera-me ainda antes do primeiro degrau.
Ali te revelarei as tuas maravilhas.

Catarina Nunes de Almeida
In: Livro redondo. Editora Língua Morta, 2019, p. 41

8.7.19

Com o silêncio emboscado na voz

Ana Pires Livramento


Com o silêncio emboscado na voz 
uma mulher atravessou um impossível retorno 
rente a horários sem sentido. 
Na linha das marés o magoado vértice das sombras 
desenhava a solidão dos barcos destruídos. 
Como se um frio de aço mutilasse todas as esperas.

Graça Pires

De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 28

1.7.19

Amor

Katharina Jung

Quando te procurei 
em rotas de seda e ouro,
eu não sabia que o amor 
é uma espera de mágoa e mel.
Nem suspeitava 
que há nos corpos nus
a enchente das marés
que altera a tempestade.
E desconhecia que é preciso
empunhar o leme
para que as mágoas inundem
desesperadamente as margens.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013, p. 8

24.6.19

Em seara alheia




Ainda não sei


Ainda não sei como contar-te que cresci
sem mar. Que andei a verter sangue a vida
toda, de coração golpeado pelas cercas vivas
dos meus lugares. Não sei como contar-te 
da minha ânsia de fugir, de correr até à praia
e cegar a memória, de como me atirei
em desespero contra os espinhos, e de como
sangrei, exausta, na sombra dos fracassos.

Agora cheguei ao mar e o sal arde-me
nas feridas. Tenho um chão de areia quente
que me queima os pés, tão gastos de correr.
Cheguei ao mar. Ao espanto comovente 
do mar, e permaneço imóvel. Tão quieta
como as rochas ao longe.
Sou livre e não me movo.
Não sei como se faz isto de viver.

Virgínia do Carmo
In: Ecos de Green Rose. Poética, 2019, p. 35

17.6.19

Futuro

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Nas próximas horas nenhum astrolábio
medirá a latitude e a longitude deste sítio.
Não queremos saber a altura dos astros.
Os fusos horários corrompem-nos a pele.
Inventaremos uma órbita que nos prenda
ao futuro em rotação vertiginosa.
O passado será a nesga de luz
onde as luas se mostrarão fase a fase.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013, p. 14

10.6.19

Como um aviso

Pedro Pires

Quando as espigas surgiram de repente
nos sulcos das searas, sem que o braço e a foice
afagassem o trigo, houve homens
que se amarraram à terra aguardando que o corpo
se transformasse em campo lavrado.
Houve mulheres que cegaram, em plena
madrugada, perto dos pomares.
Houve meninos que se fecharam por dentro
dos segredos que as mães guardam no sangue.
Houve pássaros que suspenderam o voo
sobre as casas desertas. Como um aviso.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 18

3.6.19

Em seara alheia


21.

Dizia-te
da minha inaptidão
para nomear os lugares 
mais inóspitos da alma,
lembras-te?
Dizia-te que haveria de saber
todos os nomes de todas as coisas
e só a ti, um dia, os revelaria
como súbita 
revoada de aves azuis.
Dizia-te…
mas nunca cheguei a aprender
o verdadeiro nome
dessas aves azuis
e por isso nunca fui capaz
de as chamar
a cruzar o nosso céu.
Que pensarias hoje,
se eu te dissesse
que o meu dicionário,
[exíguo que era]
Abrevia-se cada dia
um pouco mais?
E a fala cada dia um pouco menos.
Não sei já o que chamar
a esta longa aprendizagem
do esquecimento.

Lídia Borges
In: Garças. Braga: Poética, 2019, p. 32