27.5.10

Do lado mais calado do tempo

Walker Evans

Do lado mais calado do tempo
podemos falar das mãos das mães,
tão frágeis, quando trazem nas costas
a febre dos filhos.
Podemos sentir o rosto perturbado
das crianças que nos mostram a boca
mordida pela fome.
Podemos querer de volta o fascínio
dos papagaios de papel e do tempo
em que não faltava ninguém
nas fotografias da família.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

20.5.10

As papoilas devassam as sombras

M. G. Luffarelli

De costas para o meu rosto
as papoilas devassam as sombras
e assinalam o destino de um grito.
Um grito alucinado que evoca, em todos os tronos,
a perenidade dos gestos sem mágoa.
Aqui, nesta cidade sem voz,
pouco me importa a miscelânea de pretextos
desatada nos meus pés.
A rosa dos ventos altera o norte das interdições
e denuncia os destroços da casa desmoronada
que reconheço nas palavras cruéis.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

13.5.10

O silêncio pressentido

Vincenzo Balocchi

O vento da tarde entra pelas casas sem convite
e enreda nos vidros o excessivo horizonte do mundo.
Em paredes ásperas deixamos escorregar
o silêncio pressentido no clamor do olhar
quando o verão se anuncia com suas farpas de fogo.
Ao redor de tudo, as casas permanecem
encerradas à insistência do sol.
Dentro delas podemos imaginar as mulheres
curvadas sobre os filhos abrindo as blusas
para que o leite e o sangue afugentem
a morte rente às bocas.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

6.5.10

Em seara alheia



Navegação

Não avistarei a terra depois desta nua solidão.
Sem luz e sem imagem, o vazio
inventa-me e consome-me
como este sonho cruel que já não é meu.
Não lembrarei os meu olhos, a minha voz, o meu segredo.
Dobrarei os ventos para apagar a minha forma
e adormecerei meu corpo na doçura terrível do esquecimento.
Não avistarei a terra nem este mar lembrará que existe.
Nenhuma solidão lembra o seu regresso
se dela parte e ela é o seu único destino.


Marta López Vilar
In: La palabra esperada. Versão portuguesa de Marta López Vilar. Madrid: Hiperión, 2007