28.9.07

Filho a filho se doendo

Gertrude Kasebier

Há momentos
em que uma orfandade,
esquiva e indefesa,
se me cola ao sangue,
como se me habituasse
às sombras.
A meia-luz que envolve
meus ombros percorre,
longamente, os gestos
das mulheres, intrusas de si próprias,
filho a filho se doendo.
Sobre o meu corpo paira
um insensato rumor que torna
vertical a minha sombra.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

23.9.07

É Outono

Georges Seurat

Faço um barco de papel e embarco, rumo às cenas
baralhadas de um sonho qualquer.
É outono e não sei dizer quem sou ou o que quero ser.
Os meus olhos são rios de palavras afogadas,
onde só posso ver a minha imagem disfarçada de mim.
Percorro então, uma a uma, as horas por viver
e descubro um arco-íris na minha boca
a gritar uma insónia íntima.

Dentro do meu sono ainda me perturba
a tua imagem, miragem do meu deserto
vencido, demora da minha espera.
Era feito de mármore o silêncio
dos teus olhos e por ele escorriam
as palavras que eu dizia, como se fossem água.
Esse silêncio doeu na minha voz,
quando as minhas mãos violaram os gestos
e, entre nós, ficou intacto o diálogo.
Sei agora a cor exacta do vinho
com que brindei à primavera em nome
da presença que tu eras e hoje, ao recordar-te,
sublinhei o sentido dos sonhos e do vento.
Foi o tempo em que a neve presente no teu rosto
gelou os meus lábios até à transparência.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

20.9.07

O olhar vagabundo

August Sander

Tão náufrago como se fora um órfão,
fixou no vazio o olhar vagabundo.
Um estremecimento no seu pescoço,
manchado de juventude,
fez ecoar solitários ventos
sobre os ombros de um destino
ébrio de luz.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

17.9.07

Próximo de Setembro



Próximo do rosto, partilhamos
o sopro e as sílabas de setembro,
quando as cores monótonas
atingem o delírio da mudança
como uma febre alucinante.
Nos nossos lábios,
o naufrágio da voz,
onde cabe inteiro
o soluçar de um corpo
grávido de ausência.
Nenhum regaço se quebra
no abraço ilícito das sementes,
se o tempo das vindimas se aproxima
e, em todos os recantos,
interiorizamos a revolta
como um húmus imprevisto.

Graça Pires
De Poemas, 1990

14.9.07

A família

Paul Strand

Refazemos o dia, pacientemente,
e mastigamos as raízes de um compromisso
quotidiano e social.
Temos em comum o coração
e sabemos que o mesmo fio de sangue
nos tece o equilíbrio.
Por isso modelamos o itinerário de um conforto
partilhado, como se, desse modo, nos fosse
prorrogada a morte e ficássemos cúmplices,
uns dos outros, na teia da vida.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

11.9.07

Em lábios imperfeitos

Manuel Fazenda Lourenço
Com efeitos coloridos
no balancear das pernas
cobri meus lábios de cinza.
Talvez seja necessário
permanecer em silêncio,
ou reinventar palavras
que denunciem uma suspeita
indecifrável, distante, intransponível.
Falo de todos os crepúsculos
carregados de presságios
e do ciúme da palavra
em lábios imperfeitos.
Falo da solidão do olhar,
quando o corpo apenas sente
a coragem que a alma lhe consente.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

9.9.07

Estranhas cumplicidades

Ansel Adams

Nenhum nome rasga o hálito da escrita.
Nenhum poema nasce de um cansaço submisso.
Corre em minha língua um rio transtornado
e sobe-me, à altura do peito, a raíz de caligrafias
ocultas. Digam-me: em que areal escondem,
as gaivotas, o desterro de seus voos ?
Há sempre uma história ligada à deriva dos navios,
que anuncia a aprendizagem de estranhas cumplicidades.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

6.9.07

Vamos falar de poesia



Nunca te procurei. Não te procuro, tão indolente que sou. E, no entanto, acabas sempre por vir: de mansinho, insidiosa... Ó terrível desventura que salva! Em mim te aconchegas com teu tropel de vozes: lúcida desrazão que acalma, êxtase do que pressinto. E vens, misto de assombro e agonia, estranho dizer, talvez poesia.

Victor Oliveira Mateus
In Pelo deserto as minhas mãos. Sassoeiros: Coisas de Ler, 2004

4.9.07

Castelos encantados



Que podemos fazer, se as nuvens
tecem no azul castelos encantados?
Ou serão as sombras dos barcos sem rota,
esperando os marinheiros perdidos
e desvairados do apelo do mar?
Que fazer quando, de olhar assombrado,
é infrutífera qualquer tentativa
de suspeitar dos sentidos?


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

1.9.07

Uma armadilha no peito

Paul Strand


Em madrugadas, vagamente obscuras,
descrevo sombras longínquas,
que perseguem a minha sombra.
Os mais premonitórios sulcos nocturnos
brilham-me nos pés.
Uma armadilha no peito relembra
a exacta adolescência das pálpebras,
quando exibia, no sorriso,
a luz da primavera.
Era menina e havia nos meus olhos tanta fé
que, nem o céu nem o mar excediam,
em grandeza, o meu olhar.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007