22.2.21

Memórias de Isadora V



Sobre o esguio molde de minhas pernas 
acoitei o ritmo imprevisto de todos os rumores. 
Com elas soergui o corpo até ficar íntima do chão. 
Sobre elas me suspendi em movimentos 
leves, sensuais, clandestinos quase. 
Para não ruir. 
Para aprisionar os ventos. 
Para silenciar os medos. 

Os habituais saberes do bailado  
não me pertenceram nunca. 
Preferi imitar o desassossego da natureza 
como se uma incompleta dança 
me nascesse nos ossos 
até se esvair, entreaberta, 
no mais fulgurante cansaço.

Graça Pires
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 20

Se alguém quiser, pode ouvir o poema pode fazê-lo aqui:

https://youtu.be/bXRCgYDb7bg



15.2.21

Em seara alheia



Um dia tudo se resolve 

Um dia tudo se resolve 
E milhares de ansiedades
são atendidas
gerações completam-se 
num dia fraterno
e apertado pelas praças

Um dia e depois passa
fica só a estabilidade
e talvez uma estátua
ou uma lápide à espreita
a macerar a memória desse dia

Quantas lutas ainda por esse dia
de corpo à frente do corpo
e o tempo concentrado
numa garrafa de palavras
e manifestos por esse dia único
dia-noite de todos os cânticos.

Tiago Patrício
In: Altos cumes. Fafe: Labirinto, 2020, p. 30 . 
Prémio de Poesia Victor oliveira Mateus 2019 

8.2.21

Ela bordou ponto por ponto


                                                                                              Para a minha irmã, Teresa Pires
Ela bordou ponto por ponto 
os veleiros que adivinhava no seu peito. 
Colocou o bordado num caixilho 
azul-marinho e pendurou-o 
numa das paredes mais visíveis da casa. 
Garantiu, assim, que a regata 
passará sempre à sua porta. 
Agora um braço de mar 
parece abraçá-la longamente. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 31

1.2.21

Memórias de Isadora IV



Nasci sob a estrela de Afrodite, 
dizia eu, na idade de todas as crenças. 

Hesitei tantas vezes no rio do olhar, 
tão afluente, quando se alongava 
para a margem da quietude 
e percorria todos os recantos de mim. 

Que sinal de lume ardia em meus cabelos 
que, por capricho, teciam sobre os ombros 
o delido incêndio do crepúsculo? 

Em meus cílios, eu sei, cresceram violetas 
de brandura e de revolta. 
Na cor de meus olhos se colheram. 
De seu perfume, imensamente ardente, 
se alagaram. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 19