28.10.19

Marie

Amedeo Modigliani


Oculto no olhar um débil tumulto.
As veredas da infância golpeiam-me
nas pálpebras a tua morte, pai.

Como aves em queda no ensaio do voo.
Como passos sublevados correndo pela noite.
Como os dias em que enrolo
no pescoço o meu cachecol mais negro,
a exprimir a dor vertida sobre o rosto.

O laço branco que uso no cabelo é um aceno
em minhas mãos tão desamparadas das tuas.

Graça Pires
De Fui quase todas as Mulheres de Modigliani, 2017, p. 39

21.10.19

Há um ritual de espera nos teus braços

Oleg Oprisco


Quando os barcos singram lentamente
e as gaivotas descansam nas dunas
vigiando o vento, há um ritual de espera
nos teus braços, ausentes de abraços.
Como se a vida te destinasse,
em cada praia, uma solidão maior.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014, p. 41

14.10.19

A sedução da fuga



Seguimos pela noite indiferentes
a todos os ruídos que rebentam
o rigor do silêncio.
Temos nos punhos a navalha afiada
do tempo rasgando diante de nós
o túnel da eternidade.
Vamos até onde nos leve a sedução da fuga.
Queremos avistar o destino das aves
que trazem a luz das auroras riscada em suas penas.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p 54

7.10.19

Em seara alheia



Sou Valquíria

Sou valquíria de cavalo à solta
Sem rédeas 
Sem esporas
Pégaso, meu cavalo, sobrevoou comigo todos os rincões
da floresta, seguindo teu rasto.
A atmosfera, grávida de ti, chamava-me.
De lança, sedenta de amor, incitava Pégaso a voar como um louco.
E à medida que nos aproximávamos dos teus sinais,
mais me distanciava de ti.
Por onde te escondes, doce guerreiro,
que foges das lanças do amor?
Um dia Pégaso descobrir-te-á e, nesse dia, vencerei a batalha.

Carmo Baião
In: Dançam corpos em almas inquietas. Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2019, p. 9