29.1.24

Retomo o monólogo

Ana Pires Livramento


Com a voz a embater no adro da vida, 
retomo o monólogo em linguagem 
dispersa vinculada à emoção. 
Há lembranças embutidas nas pedras 
cobertas de musgo que assinalam 
esconderijos improváveis onde aceito ser, 
duplamente, a silhueta de um corpo 
e o barro inquieto por dentro dos sonhos. 
Amarro os pulsos nas árvores em flor 
para atrair os insectos e os pássaros, 
com a urgência do verão no tear das seduções. 
Imprudentes, as mãos deixam-se doer 
escondidas nas sombras 
com os dedos curvos de cansaço. 
Protagonista do meu destino, 
não cesso de nascer, 
acendida no sangue das manhãs. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.76

22.1.24

Canto baixinho

Whitney Hayward


Observo atentamente o que me circunda: 
as folhas secas coladas no desvão 
do telhado por um vento impaciente 
o alarido dos pardais a romper 
o silêncio dos mais dispersos carreiros 
o brilho da manhã quase austero 
de tão límpido a espalhar-se na planura 
a beira dos caminhos alagada de sombras 
como um excesso fresco agarrado à pele. 

E canto baixinho, com o som amarrado 
na garganta onde as palavras 
quase morrem sob a língua. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 17

15.1.24

Como se voasse entre luas

The Daily Diges


Como se voasse entre luas, 
entoo cânticos em clandestina devoção 
e recrio uma tocha luminosa 
para me baptizar outra vez, 
à tona da claridade, no lume das águas. 
Diante de flores tardias, 
o meu nome desarticula-se 
em cores inesperadas 
e sei que a infância 
fica cada vez mais distante. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 71

8.1.24

Em seara alheia


Signos do deserto

O deserto diz
com simplicidade
a luz
o ângulo
de cada grão
de arreia

Abre a mão límpida
sobre a página branca

O deserto grita
ao nomear-se
pelo próprio vazio

Alexandre Bonafim
In: O anjo entre o deserto e o não. São Paulo: Terra Redonda. 2022, p. 21

3.1.24

A luz da madrugada

                                                                         Branco Cardoso

                                     Para a Carmo Baião

Nem oração nem lamento. 

Apenas a luz da madrugada 
que a madrugada espalha 
sobre a giesta o tojo a esteva 
nas planícies onde o verde e o ouro 
se fundiram e a paisagem se ajustou 
à expressão das mulheres 
em delírio em parto em quebranto 

Para além do tumulto da memória 
a claridade dos trigais em teu olhar 
tem o ímpeto do sol nas leiras. 

E as casas caiadas de branco 
guardam o silêncio que lateja em tua voz 
onde não consentiste nunca 
a inutilidade de palavras escusadas. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 38