30.3.20

Um surdo alvoroço




Francesca Woodman

Envelhecemos com uma vara
de medir o sol na linha do olhar.
Não entendemos os sinais inscritos
nas margens do abismo.
Nem os bosques onde se abrigam
as sombras e a chuva.
Nem a misteriosa relação dos astros
no lado mais silencioso dos céus.
Um surdo alvoroço ecoa, fúnebre, na paisagem
quando, para além das montanhas, o piar dos pássaros
é tão nítido como o sopro do medo que transtorna
a leve inclinação das planícies.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 59

23.3.20

Em seara alheia


À DERIVA

O mundo é essa nau em desgoverno
que insisto em prender
em minhas mãos inábeis
como aqueles barcos de papel
que eu lançava na enxurrada
e interceptava na esquina
antes de adernar no córrego sujo

Não, eu não pude com seu
pesado trajeto
sendo arrastado na correnteza febril
da realidade e dos exílios

É esse objeto sem tamanho e sem rumo
que não cabe nos meus olhos
nem conhece o rosto da minha amada,

de onde emergem as perguntas
que nunca saberei responder

Endereço onde moram
todos os abismos

Ronaldo Cagiano
In: O mundo sem explicação, Lisboa: coisas de Ler, 2019, p.52

16.3.20

Memórias de Dulcineia

Tomaz Hipólito

Do teu lugar, da tua casa
te ausentaste.
A fantasia moldando teu perfil.
O sonho ludibriando o tempo.
Foste a noite e a claridade.
Circunscreveste o eixo das trevas
e da mais inesperada luz te rodeaste.
Estranhas se tornavam tuas mãos
quando esgrimias impossibilidades
no ruído dos dias.
Ferido ou ileso foste herói,
foste visionário, foste poeta.
Um rumor de festa te seguia.
Um jogo encantatória te cercava.

Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, p. 23

9.3.20

Terra firme

Jean Dieuzaide


À noite conheces de cor os portos
onde confundes os presságios com o destino.
No molhe acostam os navios
que trazem marinheiros sedentos de terra firme
e de outras sedes rompendo suas águas.
E tu, que conheces de cor todos os portos,
deixas que o corpo se ajuste
ao erótico desejo dos olhares.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014, p. 40

2.3.20

De muito longe



Conta-se que há laranjais que rebentam
ao pé dos poços deixando um aroma de pétalas
branquíssimas no bordo dos cântaros.
Todos os dias chegam ali mulheres
vindas de muito longe com punhais de luz
por dentro do olhar e um ramo de oliveira
entrelaçado nos dedos.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 26