27.8.09

Agosto

D'Ângelo

Recorta-se um agosto lento
na mutação da página em branco
onde conjugo o verbo amar.
A inquietude enrosca-se no texto
e contamina as frases sem nexo.
Redijo os contornos de um abraço.
Soletro um nome.
Um vento morno rasga, na minha boca,
um alfabeto alegórico com que revelo o futuro.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

20.8.09

Itinerário do silêncio

Ana Pires

À espera de um momento de luz
retorno, sem hesitar, ao itinerário
secreto do silêncio e cultivo a solidão

multiplicando as sombras.
Peregrina de outra luas,
resgato a música
que me restou da infância,
como um sobressalto,
ou uma canção de embalar,
ou água fresca a ferir-me a boca,
de tanta sede.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

13.8.09

Fuga

Harry Callahan

Pinto na janela a tormenta
de um mar imaginado.
De costas para a lua
preparo a minha fuga.
Enrolo à volta do corpo
a primeira onda:
a derradeira âncora
para roçar na boca
o lamento verde das marés.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

5.8.09

Reconheço-me

Dorothea Lange


Reconheço-me em todas as paisagens
anunciadas pelos profetas, ou pelos mágicos,
fascinada com o impulso que me faz arriscar
uma paixão sem aviso prévio.
Plagio sem restrições
a vida de heróis fantasiosos.
Procuro em todas as definições
acerca da vida e da morte
a síntese perfeita
e transcrevo-a nas cordas vocais
para a citar a propósito das coisas que acontecem.
Ninguém me diga o caminho onde se equivalem
os dias e as noites de um roteiro de verão.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997