28.5.08

Os aloendros

Manuel Fazenda Lourenço

Falta, ainda, dimensionar o canteiro
de rosas brancas, frente à porta,
para que se conte, do amor, outros segredos.
Não tenho pressa. Vou abrir as portadas
de madeira, fazer compotas, ajeitar
a dobra do lençol. E deixar alagar,
em tuas águas, os aloendros
que crescem nos meus braços.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

23.5.08

Escrevo rio



Somente a minha sombra
atravessou comigo
o brilho das manhãs
cativas do meu próprio espanto.
Em meus lábios,
tão repousados de beijos,
ocultei a sede
e nenhum horizonte
me apontou um rumor
de nascente.
Por isso, hoje,
escrevo rio
e um estuário
nasce-me nos olhos:
curso de água
à beira do verão.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

18.5.08

Em seara alheia


Debaixo do sigilo

o teu cabelo chove nas minhas mãos. e não vens
ainda sobre a terra. sabes a tempo imóvel e rios
sustenidos. dizes a paisagem como os anjos. as
palavras escorrem da boca uma das outras. e eu
escrevo a tarde que não cai. inscrevo na morte a
nossa eternidade. espero à noite ser uma mulher
por dentro de um homem. um pássaro ancorado
na aorta de deus. que o nervo da morte repugna.

Alice Macedo Campos
In: O ciclo menstrual da noite. S. Mamede de Infesta: Edium, 2008

15.5.08

Foram embora os pássaros



Foram embora os pássaros.
Foram embora,
procurando um tempo
onde a luz deflagre em suas asas.
O seu inevitável regresso
há-de acompanhar
a rotação dos ventos.
E quando, nos meus ombros,
nenhum excesso de solidão
me mutilar os braços,
eles hão-de chegar, de novo,
como um incêndio.
Os pássaros.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

11.5.08

A suspeita de um poema

Imogen Cunningham

Acordei com a suspeita de um poema
a pontuar a manhã.
Quantas vezes a palavra se demora,
e dói, e deixa na voz uma rara ansiedade.
Sei, agora, que esta imensa luz
passa no meu rosto, inesperadamente,
quando deixo que a noite cresça
por dentro do meu corpo,
como se fora fogo posto.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

7.5.08

Como se viesse o anjo

Leonardo da Vinci

Fecho-me no quarto.
Há demasiada luz
espalhada nas paredes
como se viesse o anjo
que anuncia a extinção
das sombras.
De meus lábios,
interditos a preces,
sai uma canção antiga,
um chamamento
à flor da boca.
Um fulgor suspenso
de meus olhos
tece, sem limites,
o tempo da infância.
Como se me perseguisse
um sonho intacto.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

4.5.08

Todas as mães do mundo

Ansel Adams

Em direcção a um inequívoco conforto,
corro pelos sulcos dos olhos da minha mãe:
planície imensa onde rebolo a infância
e deixo fugir os sonhos enrodilhados na esperança.
A minha mãe: lua cheia de aconchego, rio quente
onde posso albergar o pânico de ter crescido.
Transponho para o coração um tempo mítico,
como uma história de muitos séculos,
perturbadoramente gémea de um futuro
protegido por todas as mães do mundo.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

1.5.08

Há noites



Há noites em que morremos de tristeza,
à espera que uma estrela nos rebente no olhar.
Depois, pela manhã, amontoam-se-nos, na boca,
gritos de combate, como se tivéssemos, no colo,
uma criança correndo perigo.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005